quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

é Natal


«(...) principiaram a jogar às prendas, pois é bom voltarmos a ser crianças, de tempos a tempos, e a melhor altura para isso é o Natal, quando Aquele que nasceu nesse dia era criança também. Mas esperem! Primeiro jogaram à cabra-cega, como é de tradição. E juro-lhes que não acredito que Topper não visse nada - devia ter, sim, os olhos postos nas botas. (...) O modo como ele perseguia aquela menina gorducha com o lenço de renda era um autêntico ultraje à credulidade humana. Deitava ao chão os atiçadores da lareira, tropeçava por cima das cadeiras, chocava com o piano, desaparecia no meio dos cortinados: lado para onde ela fosse ele seguia logo! E sabia sempre em que sítio devia procurar a menina gorducha. Não apanhava mais ninguém. Mesmo que esbarrassem propositadamente com ele - o que alguns fizeram - limitava-se a fingir que os perseguia, mas duma forma tal que era uma afronta à boa fé dos outros. E logo a seguir desviava-se em direcção da menina gorducha. (...) quando ele acabava por a apanhar, quando, a despeito dos ruge-ruges da saia de seda e das rápidas palpitações que ela fazia ao passar a correr por ele, Topper lá a conseguia encurralar num canto sem saída, a conduta dele tornava-se então absolutamente execrável. Fingia não a reconhecer, tornando-se para isso necessário tocar-lhe no penteado (...) eles desapareceram muito juntinhos atrás das cortinas, a fazerem confidências um ao outro.»


Charles Dickens, Cântico de Natal

brinquem, finjam, sonhem e encontrem-se.


Joyeux Noël

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

carta


esta carta que permanece ilesa nas mãos côncavas de uma menina, tem um autor espectral. ninguém se acusa, ninguém assume identidade, ninguém oferece uma existência dura à autoria desse escrito que permanece ileso nas mãos côncavas da menina. ela bebe sôfregamente cada palavra que mal sabe ler. ela chora pelo toque na alma que essas palavras coladas ao papel lhe provocam. ela teme que a carta lhe seja roubada das pequenas mãos côncavas, porque nessas mãos ela segura o seu tesouro. o autor está em cada vírgula, mas cada vírgula é mentira. o autor dá à menina resistententes asas para que voe até ao infinito.


a liberdade guarda-se nas mãos.

o autor da liberdade escreve sublimemente a carta que todos guardamos nas mãos. uns lêem, outros pedem que a leiam por eles.

sábado, 7 de novembro de 2009

let´s put a smile on this face



um dia faço um sorriso de papel e lanço-o janela fora, pedindo a um sopro de vento que o leve a todas as bocas do mundo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

os grilhos da calçada


eu quero que as pedras da calçada me libertem a alma a cada passo curto do meu andar. eu quero. e eu quero isto porque estou agrilhoada pelos passos que dou nessa calçada, em que me escorregam as ideias da mente, como livros de umas mãos rotas. as pedras da calçada não aprisionam apenas a minha alma, mas tantas outras que, tal como eu, não seguram com firmeza as suas sementes. zelo hoje pela minha, amanhã quiçá por a de mais alguém. mas como sou egoísta, hoje quero só a minha de volta. quero. quero hoje.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

sur ma poitrine

existirá algo mais belo que um abraço em plena nudez?

(minuto 2:15)

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

sensibilidade ao pensamento


hoje. hoje sinto as ideias elevadas ao quadrado. sinto um eco que se repercute à voz que grita a exaltação dessas ideias. mas as ideias sentem-se?! eu sinto que as sinto e essa convicção é mais forte do que a possibilidade de o negar. porque há um canal que liga o ideológico ao emocional, produz-se em mim um intercâmbio de ideias trabalhadas pelas mãos da emoção.

A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
Fernando Pessoa


quinta-feira, 3 de setembro de 2009

hora do conto


ela, sentada no colo, via as suas pernas curtas caírem suspensas sem tocar o chão, e os chinelos que lhe cobriam os pés, também eles pequenos, pendiam nos dedinhos nus, como um relógio de cucu numa sala antiga e silenciosa. assim se deixava ficar, escutando uma história. porque escutar uma história é não ter os pés no chão, é ser-se pequenino. ouvir uma história é ser humilde e aceitá-la como é, recebê-la como se fosse o mundo inteiro em algumas palavras. a história de hoje não será a de amanhã, nem a de amanhã será melhor que a de hoje, e, no entanto, eu quero ser como ela. quero o meu colo contador de histórias, quero ser pequenina sempre. a preguiça de crescer é o meu maior pecado, mas eu creio que as crianças não são pecadoras.

était une fois une petite fille qui aimait à rêver... c'est moi même.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

open the door and turn off the light


bati à porta. silêncio. posso entrar? silêncio. entrei com a autorização do silêncio. sentei-me perto. um pouco mais perto. mais perto ainda e abracei-te... em silêncio. do abraço brotou uma lágrima, da lágrima um beijo salgado, do beijo o desejo físico. apagaste a luz. mergulhámos na escuridão. tudo está consumado. fecho a porta. levo um sorriso nos lábios. sou luz, és luz. quebrei o silêncio e a porta está aberta.



faça favor de entrar sem pedir.


terça-feira, 11 de agosto de 2009

why not?


há dias acabei de ler um ensaio de Nietzsche que me foi completamente visceral - A Origem da Tragédia - uma exposição teórica daquelas que são as verdadeiras raízes da tragédia. basicamente, e não querendo pregar uma valente seca a ninguém, tenho a dizer que Nietzsche concebe a tragédia como originária de dois instintos: o apolíneo e o dionisíaco. a saber, Apolo e Diónisos, duas divindades da cultura helenística, formam, num amplexo, a força que concebe a tragédia ática. com efeito, a «alma apolínea», que se traduz no poder de individuação, em contraste com a «alma dionisíaca», que eleva a Vontade universal, ou seja, que concebe a imiscuação do homem na melodia do Universo, estão devidamente doseadas nesta força concepcional, mas... a embriagez dionisíaca, pela sua própria natureza, consegue ultrapassar a ingenuidade apolínea. SÍNTESE: foi do fabuloso coro dionisíaco que a cultura bebeu até ao atingir do mundo onírico e orgiástico da embriaguez: «(...) é especialmente por efeito da música que o espectador da tragédia se sente invadido pelo pressentimento seguro de uma alegria suprema (...) de maneira que ele crê ouvir a voz mais secreta das coisas que, do fundo do abismo, lhe fala inteligentemente». existe tanto mais que podia expôr, mas eu não sei escrever como Nietzsche e apenas queria cativar as atenções para uma obra que pode ser interessante de se passar os olhos, um pouco da alma e também dos neurónios.

agora é a parte em que vocês dizem "vai cortar os pulsos", mas eu estou com uma grandessíssima bebedeira divina:


"Ave Diónisos, deus do Vinho"!!

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

alone is the last place I wanted to be


um dia contei a alguém o meu maior medo: a solidão. advém daqui a eterna pergunta de como definir solidão. no fundo, é como a saudade ou o amor, em que ficamos sempre frustrados depois de áureos suores dos esforços para construir definições perfeitas, mas inatingíveis. não vou, de modo algum, tentar definir solidão porque é demasiado doloroso para mim a própria tentativa. fico-me pelo simples"pairar" sobre a palavra figurativa desse estado que me faz construir mentalmente a imagem de um sofá apoiado no vazio, onde o ar escasseia e uma chuva quase imperceptível tenta molhar esse sofá para que ele, com o peso da água, deixe a sua suspensão no vazio e caia numa superfície precisa, nem que seja apenas em respeito à lei da gravidade. nesse sofá sentam-se, isoladamente e um de cada vez, todos aqueles que precisam de uma mão, mas que a não encontram; os que precisam de uma palavra, e a não recebem; os que precisam de um novo chão, porque o que pisam é demasiado pedregoso. eu não quero sentar-me nunca nesse sofá, prefiro antes uma cadeira dura e rodeada de tantas outras que não dêm lugar ao vazio. esta é a dança das cadeiras, mas em nenhuma delas se senta alguém de nome Solidão, nem mesmo aquela a quem Fernando Pessoa chama de sua mulher...

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

coeur


é tão bom começar. o início é o momento em que somos tomados de um espírito leve e auspicioso. não há ainda compromissos sobre o que se vai escrever, não há definições que perturbem o fluir natural e desordenado das ideias. somos livres para tecer as nossas próprias asas e felizes por podermos expressar as palavras do coração. somos crianças, enfim.

que palavras moram no meu? não tenho dedos que cheguem para contar, mas todos os dias tenho duas mãos cheias delas à espera de quem as veja. cada mão tem cinco dedos e eu acho que cinco mais cinco são dez, portanto, são dez as palavras que aqui deixo, vindas directamente do coração: sonho, vermelho, correio, viagem, desejo, simetria, ar, música, embriaguez, saia. reparem como a conjugação destas palavras pode moldar-se a diversas interpretações. pois bem, eu sei a minha, dou-vos liberdade para a vossa. agora vou ouvir The Doors, e recomendo The End, para começar em grande a partir de um fim...