não somos nós que escrevemos, é o
nosso ânimo que, tirando os dedos da inércia, escreve - quando a escrita é um
acto de liberdade. escrevo espontaneamente através de sensações (geralmente
extremas): ou quando sou muito feliz ou quando preciso de procurar a razão para
um estado de tristeza, definir a palpabilidade da dor, e assim
proteger/defender-me dela. é uma atitude feminina, que alguns bons homens
também têm. dela nasceram grandes escritos e escritores, por isso, não é banal, faz parte do artifício (de arte) humano. mas eu não tenho arte, e uso-me de ferramentas toscas: do geral para o concreto, faço um inventário
de possibilidades e, relativizando, nego a todas o protagonismo. no fim, ‘está tudo bem’, digo, ‘olha ali o sol’, e
tento fazer uma cama para dormir sobre o assunto. mas algo insiste em permanecer
colado à pele (além deste calor
abrasador), como aquela Angústia que
traduz para português La Peau Douce, ou a «gentil
angústia» de que um crítico de cinema
falava, há não muito tempo, a propósito dos filmes de Bergman. o cinema
leva-nos sempre ao encontro da linguagem da pele. nele descubro as minhas respostas,
e algum conforto no peito. esta é a cama onde me deito.
[maldito espelho da casa de banho,
que não me deixa lavar as mãos sem de seguida examinar a profundidade das
olheiras.]
La Peau Douce, François Truffaut