sexta-feira, 28 de agosto de 2015

sábado, 15 de agosto de 2015

cinema II

«... ia-me invadindo uma lenta indolência que apagava o tempo e a ordem dos dias. Levantava-me tarde, e ao acordar ouvia a máquina de escrever, e algumas nem sequer saía para seguir Walter. Ficava a ver filmes que já quase sabia de cor, deslocava-me para uma das poltronas do fundo quando se apagavam as luzes e adormecia ouvindo as marchas militares dos jornais de actualidades, deixando para mais tarde a obrigação de actuar e de fazer caso de Valdivia, que também nada fazia, que certos dias passava horas sentado diante de Rebeca Osorio, vendo-a escrever. Era como se também para ele o mundo se resumisse aos limites fechados do Universal Cinema. (...)
Valdivia, como Walter, tinha tido sempre o poder dos actos. O meu dever era olhar sem que soubessem que olhava. Uma tarde vi talvez o que não devia e soube por que motivo Valdivia parecia tão tomado como eu próprio pela inércia do adiamento. (...) Walter não estava. Fui procurá-lo pelas ruas desertas de Madrid.
Eu caminhava atrás dele pela cidade mas não tinha a sensação de intempérie: em toda a parte, o ar era tão cálido e tão rarefeito como no interior do Universal Cinema, e a luz igualmente cinzenta. Cada um de nós era a sombra multiplicada dos outros e procurávamo-nos e fugíamos tão solitariamente por Madrid como quando o último espectador abandonava a sala e os porteiros se retiravam e não ficava mais ninguém além de nós naquele edifício, nos corredores e vestíbulos decorados com cartazes de filmes e retratos de atrizes pintados à mão.»

Beltenebros, Antonio Munõz Molina



(Goodbye, Dragon Inn, Tsai Ming-Liang)

terça-feira, 11 de agosto de 2015

cinema


«Com o livro na mão, repeti os passos dele, encontrei o cinema aonde ele ia procurar a rapariga, comprei um bilhete para a última sessão. Não havia quase ninguém na sala e pude ocupar sem dificuldade a cadeira indicada no romance: no canto do fundo, à esquerda, junto da luz vermelha da saída de emergência. O cinema tinha uma vasta decrepitude de veludos e ouros falsos maltratados por um abandono talvez anterior aos anos da guerra. A luz dos globos amarelos que pendiam do tecto tingiam o ar com um resplendor toldado, como de lamparinas de azeite. O protagonista do romance só permanecia meia hora no cinema, devorado, ainda me lembrava das palavras exactas, por uma impaciência febril. Se ao fim de meia hora ninguém se sentasse ao meu lado, deveria ir-me embora e voltar no dia seguinte. (...) Para me distrair nos últimos minutos de uma espera que já suspeitava ser inútil, olhei distraidamente para a tela. Surpreendeu-me a sonora voz espanhola de Clark Gable. Alguém passou pelo cortinado vermelho da saída de emergência e acercou-se de mim, uma mulher de blusa branca que trazia um livro na mão. Não me voltei para olhá-la quando se sentou ao meu lado.
- Gostou do romance? - perguntou, tocando-me na mão.
- Ainda não acabei.
- Melhor assim. Não acabe.»

Beltenebros, Antonio Muñoz Molina


                                                                                                                                              [Tom Waits]