quarta-feira, 23 de julho de 2014

heavenly

- não faço ideia do que estás a falar.
- mas é como se tivéssemos visto um OVNI. somos testemunhas do mesmo facto, e somos testemunho de qualquer coisa...
- não faço ideia do que estás a falar.
- tens medo?
- não faço ideia do que estás a falar.
- queres que guarde segredo?
- não faço ideia do que estás a falar.
- eu também não.


- estás a ouvir a cotovia?
- shhh... estou.


Heavenly Creatures, Peter Jackson

quinta-feira, 17 de julho de 2014

uma ida ao cinema

«- Leva-me ao cinema, não leva? – murmurou quase para si própria.
            Eikichi e eu, conduzidos parte do caminho por um homem de Koshuya de aparência duvidosa, fomos a uma estalagem que, segundo se dizia, pertencia a um ex-prefeito. Tomámos banho juntos e almoçámos peixe fresco do mar.
              Quando ele partiu, entreguei-lhe uns trocos:
   - Compra algumas flores para as exéquias de amanhã.
            Tinha explicado que deveria regressar a Tóquio no barco da manhã. Estava com falta de dinheiro, embora lhes tivesse dito que devia regressar à escola.
           - Bem, de qualquer maneira, vê-lo-emos este Inverno – afirmou a mulher mais velha. – Iremos buscá-lo ao barco – prosseguiu. – Avise-nos, quando vier. Ficará connosco (...).
           Quando os outros deixaram o quarto, pedi a Chiyoko e a Yuriko que viessem comigo ao cinema. Chiyoko, inclinada, pálida e cansada, pressionava com as mãos o abdómen.
              Yuriko olhou fixamente para o chão.
              A pequena dançarina estava lá em baixo a brincar com as crianças da estalagem. Assim que me viu descer, escapou-se e pôs-se a bajular a mulher mais velha para que a deixasse ir ao cinema. Regressou, distante e abalada.
(...)
Ao deixar a estalagem, a dançarina acariciava, sentada à entrada, um cão. Não consegui aproximar-me dela, e ela parecia não ter força para erguer os olhos.
Fui ao cinema sozinho. Uma mulher lia o diálogo com uma pequena lanterna eléctrica. Abandonei o lugar, quase imediatamente, e regressei à minha estalagem. Deixei-me ficar, por muito tempo, sentado, olhando para fora, com os cotovelos no peitoral da janela. A cidade estava escura. Julguei ouvir um tambor à distância, e sem razão especial dei comigo a chorar.»


Yasunari Kawabata,  A Dançarina de Izu



(Hijosen no onna, Yasujiro Ozu)

segunda-feira, 7 de julho de 2014

[estou?]

- liguei para fazer silêncio.

- ouço a tua respiração. o meu silêncio preferido.

(It's a Wonderful Life, F. Capra)

quarta-feira, 2 de julho de 2014

preces

há alturas na vida (e começar dizendo “há alturas na vida”, eu sei, é uma banalidade) em que  precisamos de nos libertar do sagrado. o sagrado não é uma cruz ao peito ou uma missa de Bach. podia ser. o sagrado é uma memória. uma memória que colocamos em causa, tal como os crentes, nos momentos de maior sofrimento, colocam em dúvida a existência de deus. olho para uma camisa antes de a depositar no tambor da máquina de lavar, e pergunto “estavas mesmo no meu corpo naquele dia?”. espero ansiosamente  um “não” que me conforte e devolva outra fé; encontro-me em genuflexão diante de um altar imaginário. mas as minhas preces são ignoradas: o “sim” insinua-se na cor da camisa e oferece um bilhete de volta a essa memória.


(memórias sagradas são puras ficções.)


An Affair to Remember, Leo McCarey