os dias começam a ficar maiores, na sua ordem cíclica e infinita. além da constatação óbvia, há também uma espécie de satisfação geral que se instala nos rostos, com o prolongamento da
duração da luz natural: há mais gente na rua e - indicador importante - mais risonha. hoje, aqui (lugar abstracto chamado quarto) onde tantas vezes escureço
com os próprios dias, recolhendo-me à intelectualidade da luz artificial, ainda
faz sol. estou a contar as horas, como no Cléo
de 5 à 7, de Agnès Varda, num decrescendo temporal que, não sendo um prenúncio de fatalidade (condição de Cléo), é o próprio deleite com a aferição de que, entre essas duas decisivas horas, o sol ainda não se apartou para outra zona do globo. assim sendo, não posso dedicar-me de imediato às reflexões mais sombrias,
que não são necessariamente sombrias, mas profundas, porque a luz do dia
convida à superfície, ao nada e à falta de seriedade: estou condenada a não descer à caverna dos
pensamentos, para já. tenho mais uns minutos até voltar a pôr os óculos na cara, vestir o ar sorumbático de quem pensa com
afinco nos grandes assuntos, nas questões concretas ou nas coisas-nenhumas que,
diariamente, nos deixam com dores de crescimento. não dessas. ainda faz sol, e
eu quero aproveitar este sol para lazer através de um texto - este, por sinal - escrever a
banalidade e deixá-la registada. um dia disseram-me que eu era “uma casa com
boa luz”. quando o dia se mascarar de noite, talvez se acenda algures dentro de
mim uma luz amena, daquelas que não fere o olhar, e talvez não precise da luz
artificial. mas não me basto a mim própria; não nos bastamos a nós próprios. precisamos
sempre de outra luz.
Cléo de 5 à 7, Agnès Varda