domingo, 23 de março de 2014

5 à 7

os dias começam a ficar maiores, na sua ordem cíclica e infinita. além da constatação óbvia, há também uma espécie de satisfação geral que se instala nos rostos, com o prolongamento da duração da luz natural: há mais gente na rua e - indicador importante - mais risonha. hoje, aqui (lugar abstracto chamado quarto) onde tantas vezes escureço com os próprios dias, recolhendo-me à intelectualidade da luz artificial, ainda faz sol. estou a contar as horas, como no Cléo de 5 à 7, de Agnès Varda, num decrescendo temporal que, não sendo um prenúncio de fatalidade (condição de Cléo), é o próprio deleite com a aferição de que, entre essas duas decisivas horas, o sol ainda não se apartou para outra zona do globo. assim sendo, não posso dedicar-me de imediato às reflexões mais sombrias, que não são necessariamente sombrias, mas profundas, porque a luz do dia convida à superfície, ao nada e à falta de seriedade: estou condenada a não descer à caverna dos pensamentos, para já. tenho mais uns minutos até voltar a pôr os óculos na cara, vestir o ar sorumbático de quem pensa com afinco nos grandes assuntos, nas questões concretas ou nas coisas-nenhumas que, diariamente, nos deixam com dores de crescimento. não dessas. ainda faz sol, e eu quero aproveitar este sol para lazer através de um texto - este, por sinal - escrever a banalidade e deixá-la registada. um dia disseram-me que eu era “uma casa com boa luz”. quando o dia se mascarar de noite, talvez se acenda algures dentro de mim uma luz amena, daquelas que não fere o olhar, e talvez não precise da luz artificial. mas não me basto a mim própria; não nos bastamos a nós próprios. precisamos sempre de outra luz.



Cléo de 5 à 7, Agnès Varda

terça-feira, 18 de março de 2014

Terje Vigen

«There lived a remarkably grizzled man
on the uttermost, barren isle
he never harmed, in the wide world's span,
a soul by deceit or by guile;
his eyes, though, sometimes would blaze and fret
most when a storm was nigh,-
and then people sensed he was troubled yet
and then there were few that felt no threat
with Terje Vigen by. (...)»

Terje Vigen, Henrik Ibsen



Terje Vigen, Victor Sjöström (1917)


quarta-feira, 5 de março de 2014

cat feeling






They Live by Night, Nicholas Ray
Cluny Brown, Ernst Lubitsch
Cat People, Jacques Tourneur


sábado, 1 de março de 2014

não é Setembro, mas chove

September rain falls on the house.
In the failing light, the old grandmother
sits in the kitchen with the child
beside the Little Marvel Stove,
reading the jokes from the almanac,
laughing and talking to hide her tears.

She thinks that her equinoctial tears
and the rain that beats on the roof of the house 
were both foretold by the almanac,
but only known to a grandmother.
The iron kettle sings on the stove.
She cuts some bread and says to the child,

It's time for tea now; but the child
is watching the teakettle's small hard tears
dance like mad on the hot black stove,
the way the rain must dance on the house.
Tidying up, the old grandmother
hangs up the clever almanac

on its string. Birdlike, the almanac
hovers half open above the child,
hovers above the old grandmother
and her teacup full of dark brown tears.
She shivers and says she thinks the house
feels chilly, and puts more wood in the stove.

It was to be, says the Marvel Stove.
I know what I know, says the almanac.
With crayons the child draws a rigid house
and a winding pathway. Then the child
puts in a man with buttons like tears
and shows it proudly to the grandmother.

But secretly, while the grandmother
busies herself about the stove,
the little moons fall down like tears
from between the pages of the almanac
into the flower bed the child
has carefully placed in the front of the house.

Time to plant tears, says the almanac.
The grandmother sings to the marvelous stove
and the child draws another inscrutable house.



Sestina, Elizabeth Bishop



[adeus, minha avó querida.]