segunda-feira, 27 de agosto de 2012

espelho

olho-me ao espelho, porque tenho medo de perder a memória da minha cara, tenho medo de não me reconhecer. o tempo que passa e amadurece os traços, é o mesmo tempo que quer descaracterizar. o espelho é a crença numa visão, não uma visão crível só por si. o espelho apazigua, mas por vezes mente ou exagera. estou tranquila por verificar, no exame quotidiano, que não mudei muito, que algo infantil permanece no parêntesis do meu sorriso, contudo, há um excesso de idade no meu olhar, não nos olhos, mas no olhar. olho como quem vê o que foi e o que será, como quem carrega o tempo na íris. reconheço-me no que fui e no que serei, porque a mentira do espelho é a verdade interior. somos a constância e a mudança, num só corpo.
 

(Je vous salue Marie, Godard)

terça-feira, 14 de agosto de 2012

a sós

em público, cumprimos o pensamento de Saint-Exupéry que diz que "amar é olhar juntos na mesma direção", assistimos ao espetáculo da vida, lado a lado. na intimidade, despidos dos adereços, olhamo-nos, simplesmente, na timidez do confronto das pupilas que se adoram.


(Imagem: Elena et Les Hommes, Jean Renoir)

sábado, 11 de agosto de 2012

areia

enterro a mão na areia, até à profunda camada em que ela reserva a água. penso na fome da superfície, que devora a espuma das ondas, assim que elas se apartam para retomar o seu movimento natural. somos tão parecidos com a areia, famintos de pele, reservadores de sentimentos. há humidade dentro de nós. somos grutas com estalactites de desejo, submundos de uma superfície normalizada, como a areia lisa depois da onda. olho para o céu e sinto uma espécie de trindade do ser: o infinito, o corpo, e o coração, esse que toco, húmido e moldável, através da mão enterrada na areia. com a cabeça nas alturas e uma mão nas profundezas, encontro o  ponto sísmico das memórias do meu tacto.




terça-feira, 7 de agosto de 2012

quando

algo se expressa por quantos poros tem a pele. uma prega de sorriso nos olhos, a testa esticada de contentamento, os lábios - qual fatia de melão fresca -, em frémitos de alegria, as mãos, pura reprodução do gesto infantil, procuram-se uma à outra, na efervescência da expectativa… uma surpresa. alguém chegou. bateram à porta.
entretanto, já todo um processo químico reformulou a fisionomia e adocicou a saliva.
vai abrir.
(tinha saudades tuas)


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

olha a luz


se passares por um lugar que intuas que um dia será nosso, deixa a marca do futuro, sente a luz que a bem-fada; ela - a marca - permanecerá até ao amanhecer desse dia, e cumpriremos o prazo inscrito na nuvem do tempo. não será o único lugar, e o mais importante, como nas fotografias, é a luz. há lugares que chamam significados longínquos, tecidos pela primeira passagem de um dos dois, lugares que nos conhecem pelos passos, pelos sentimentos que transportamos na planta do pé. é que somos amor da cabeça aos pés, iluminados a partir do interior, e isso até as pedras da calçada podem reconhecer. vejo-te nesse lugar, a imaginar como será, já que não pode ser agora. deito a cabeça sobre a almofada da fantasia e voo até aí. ainda que nunca se concretize, foi bom estar contigo nesse lugar, respirarmos juntos o mesmo momento e recebermos a mesma luz oblíqua de um sol cansado mas feliz de olhar para nós, fórmula ímpar.