olho-me ao espelho, porque tenho medo de perder a memória da
minha cara, tenho medo de não me reconhecer. o tempo que passa e amadurece os
traços, é o mesmo tempo que quer descaracterizar. o espelho é a crença numa
visão, não uma visão crível só por si. o espelho apazigua, mas por vezes mente
ou exagera. estou tranquila por verificar, no exame quotidiano, que não mudei
muito, que algo infantil permanece no parêntesis do meu sorriso, contudo, há um
excesso de idade no meu olhar, não nos olhos, mas no olhar. olho como quem vê o
que foi e o que será, como quem carrega o tempo na íris. reconheço-me no que
fui e no que serei, porque a mentira do espelho é a verdade interior. somos a
constância e a mudança, num só corpo.
(Je vous salue Marie, Godard)