domingo, 27 de abril de 2014

bom ditador

muitas vezes, ao abrir uma janela ou uma porta, penso que terá sido este o gesto primordial da invenção das artes do enquadramento, como seja a pintura, a fotografia e o cinema. aquilo que vejo através da moldura de uma janela é a paisagem que se organiza o melhor possível para gozo do meu olhar; pela frecha de uma porta vejo o tal  obscuro objecto do desejo. no dia-a-dia são estes os dois tipos de enquadramento impostos pela realidade, que decide literalmente o que vemos; no cinema, por exemplo, a realidade cede a direcção das imagens ao realizador, e é então ele que escolhe o que vemos e o que não vemos, o que vemos através de, e o que podemos imaginar. as ditaduras do olhar estão por todo o lado, resta a liberdade para decidir com qual nos identificamos mais. que filme vou ver hoje? de que bom ditador?


Cet Obscur Objet du Désir, Luis Buñuel

terça-feira, 22 de abril de 2014

entre papas, rabugice e Ivan, o Terrível

«Tsézar fuma o cachimbo, refastelado à sua mesa. Está de costas para Chúkhov e não o vê.
 Em frente dele está sentado o X-123, um velho magro condenado a vinte anos de trabalhos forçados. Está a comer papas.
 - Não, meu caro - dizia Tsézar suavemente -, a objectividade obriga a reconhecer que Eisenstein é genial. Pois Ivan, o Terrível não é genial? A dança dos guardas mascarados! A cena na catedral!
 - Afectações! - zanga-se o X-123, parando a colher a caminho da boca. - Tanto artifício que até já deixa de ser arte. Especiarias em vez do pão de cada dia! Além disso, a ideia política é ignóbil: justificação da tirania pessoal. Escárnio sobre a memória de três gerações da intelligentsia russa! (Come as papas com a boca insensível, não lhe fará proveito.)
 - Mas que outra interpretação lhe permitiriam?...
 - Ah, permitiriam? Então não digam que é um génio! Digam que é um bajulador, que satisfez uma encomenda canina. Os génios não ajustam a sua interpretação ao gosto dos tiranos!
 - Hum, hum - tossiu Chúkhov, constrangido por interromper uma conversa erudita. E também não tinha motivo para ficar ali especado.
 Tsézar voltou-se, estendeu a mão para a tigela das papas; nem sequer olhou para Chúkhov, como se as papas caíssem do ar, e voltou ao seu tema:
 - Mas ouça, a arte não é o quê, mas o como.
 O X-123 abateu o punho sobre a mesa.
 - Para o diabo com o vosso «como» se não desperta em mim bons sentimentos!»

Um Dia na Vida de Ivan Deníssovitch, Aleksandr Soljenítsin


o velho conflito entre o conteúdo e a forma.




quarta-feira, 9 de abril de 2014

baleias de madeira

“a música não é apenas um conjunto de notas, é também o silêncio que criamos entre as notas.”
Samir Joubran



[é um baleia de madeira, chama-se oud e navega num mar de notas e silêncios criados pelo Trio Joubran. ]


partilhar a maravilha é a minha maneira de ser generosa. não a endereço a ninguém em particular; quem se maravilhar também, é esse o destinatário da partilha. ontem fui ao concerto do Trio Joubran, na Gulbenkian. Le Trio Joubran são três irmãos – Samir, Wissam e Adnan - palestinianos, radicados há 5 anos em Paris. aos irmãos, que tocam oud, junta-se Yousef Hbeisch, na percussão. um conjunto animado, com a bondade transparente no sorriso e uma relação expressiva com os instrumentos. relação, aliás, que dura há quatro gerações de construção de ouds, as baleias de madeira que entraram, assim, numa noite, para o meu imaginário. Samir, o mais velho, depois da primeira música, tomou o microfone e dirigiu-se à audiência em inglês. entre outras coisas, disse que há uma diferença entre “palestinian music” e “music from Palestine”. com esse apontamento na ideia, pelo menos no início do concerto, tentei produzir pensamento sobre esta noção, procurando fazer um exercício de análise cultural... mas o deleite não acompanha raciocínios, devia saber isso. não estava preparada para gostar tanto. não foi uma questão de expectativa/surpresa,  foi somente entregar a alma à maravilha como quem a vende ao diabo. não estava preparada para uma sonoridade que, ao mesmo tempo que carrega uma melodia artesanal, íntima, amplia o espaço, dá-nos a conhecer a linguagem simples das estrelas, lá no céu. o céu, aliás,  é título de duas das músicas do álbum: O céu de Córdova (Sama Cordoba) e O céu de Swollow (Sama sounounou). são céus das suas Viagens (AsFâr) – nome do álbum – que se tornam “chão” de uma experiência que vou guardar como ‘o dia em que vi baleias de madeira’. não, não será só essa a memória, tenho a certeza.

https://www.youtube.com/watch?v=UshD9FQin24