sábado, 30 de junho de 2012

em silêncio

estás inteiro aqui? – pergunto-me em silêncio. há qualquer coisa que tenho medo de procurar saber, de insinuar ou inventar. há qualquer coisa que, não sabendo, não quero saber, porque é má, mesmo na ignorância. vai-te embora coisa má, não me tentes.
estás inteiro aqui? sim, estou.


The Kiss, Klimt

quarta-feira, 27 de junho de 2012

resposta

chamo-te, para além da voz. é um caminho que traço com o dedo, na medida da página do livro. chamo-te pelo toque das palavras lidas e imaginadas, onde, inquieta, me escondo, como se atrás de uma parede, à espreita, para te apanhar. conto até dez, abro os olhos e corro sem direção, porque estás em todos os lugares, e todos os lugares fingem a tua sombra. ao chamar-te encontro-te antes dos meus olhos. és uma resposta que se sente.
chamo-te. escondeste-te atrás da lua. vigias a minha noite.


sábado, 23 de junho de 2012

glass


tenho pensamentos de vidro a partirem-se dentro da minha cabeça (preciso de uma onomatopeia para isto). copos de vinho que se quebram depois de vazios. bebes o vinho e o material estala. tu, sim. apressa-te a vir encher de novo o copo, antes que o vidro sofra a ausência da tua boca. o vidro não chora, mas corta. tenho medo de apanhar os cacos e ferir um dedo. está tudo espalhado. vem ajudar-me a varrer os vidros.
traz vinho, não tragas mais copos.

sábado, 16 de junho de 2012

pó na estante

limpo o pó à estante que espera. a estante que exprime a espera pelo pó que acumula. a estante cujo pó é a marca do tempo que passa. quando foi a última vez que olhaste para mim?, diz ela. limpo os vestígios da minha demora. a estante pede. eu tinha saudades daquilo que ela sustém.
limpar o pó tem algum lirismo.

sexta-feira, 15 de junho de 2012






(L'homme qui ment, Alain Robbe-Grillet, 1968)

sábado, 9 de junho de 2012

tu


antes de existires para mim, já te pronunciava na segunda pessoa do singular. eras sujeito da frase e verbo intransitivo. Tu existes: o teu nascimento gramatical para mim.
Eu existo,
Tu existes,
Ele existe… não. só se “ele” fosse a soma de nós os dois, uma espécie de reflexo de duas existências. Eu e Tu - assim aprendi a conjugar os verbos, num regime egoísta. talvez.
antes de existires para mim, já eu te predicava nos textos da escola. se escrevia “chove”, logo me sentia perdida pela ausência do sujeito na frase. porquê que não podia escrever “tu choves”?  onde estavas quando chovia? esperavas por mim numa rua qualquer, mesmo desconhecendo a minha existência gramatical? eu pensava que sim,  então aprendi a construir uma oração com todos os seus constituintes semânticos no lugar certo.  Tu estavas na frase, e por isso ela fazia sentido.

antes de existires para mim, a minha palavra escrita já te denunciava. era um ditado do coração.
antes do corpo, era o verbo.




sexta-feira, 1 de junho de 2012

lugar

todos os lugares têm um sentido de eternidade. têm o sempre escrito nas pedras da calçada. o sempre da passagem, o cheiro dos acontecimentos, a música do quotidiano, o sorriso das crianças, a mágoa dos corações cinzentos.
sempre que passo aqui sou um eu vacilante entre a respiração do ontem e a voz do amanhã,
um híbrido na eternidade do agora.
(precisei de escrever para preservar o eco do agora.)

Robert Doisneau