sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

wonderland

«Have I gone mad?
   I’m afraid so, but let me tell you something, the best people usually are.»


penso muitas vezes na Alice e na sua licença para a loucura. convoco, dentro de mim, um autêntico circo felliniano, com as mais exóticas e inenarráveis personagens. sou uma fábula errante, impelida para o ordinário quotidiano. é tudo tão pequeno lá fora, é tudo tão imenso cá dentro. esqueço, por momentos, as regras do jogo.



terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a vida da orquídea

nunca me interessei particularmente por plantas/flores, no sentido de lhes proporcionar duração de vida. é bom receber (ou comprar) ramos de flores e colocá-las numa jarra. elas trazem vida aos móveis secos de solidão e animam os livros arrumados porque, respirando no mesmo espaço, libertam o pó das histórias abandonadas. muda-se duas, se se tiver sorte, três vezes a água, e ao fim de alguns dias já estão no caixote do lixo, junto dos restos de comida. é injusto; depois de colocarem um aroma no ar, oferecerem a sua vida e a sua cor a uns quantos metros quadrados, são deitadas fora como ossos de frango, no fim de uma refeição. nada a fazer, ainda assim, que se ofereça um chavão: c’est la vie. esta semana recebi uma orquídea, uma planta com raízes, num pequeno vaso, e dentro de uma espécie de tubo de ensaio gigante. quem ma ofertou conhecia muito bem a minha vontade de olhar mais vezes para essa flor estranhamente bela. tê-la junto de mim resolveria esse desejo contínuo. até aqui, como dizia no início, nunca senti nenhum interesse expressivo por plantas, a não ser aquelas que foram já protagonistas da literatura, recordo-me, por exemplo, d’A Túlipa Negra, do Dumas pai, ou de outro livro, A Dama das Camélias, do filho (não, não vou discorrer aqui sobre o tópico 'as flores na literatura'). mas, dizia eu, as plantas nunca me despertaram qualquer vocação e, no entanto, hoje dei comigo a pesquisar e a ler sobre “como cuidar orquídeas”. caiu o carmo e a trindade! (que ficou incompleta ali atrás, só com o pai e o filho Dumas). já sei tudo sobre a rega adequada, a exposição ao sol, a temperatura ambiente... ela é tão delicada que só poderia estar assim como está, protegida num autêntico tubo de ensaio gigante. vou fazer os possíveis por lhe dar uma vida longa, e acho que quando ela «deixar de existir», como uma Madame Bovary («Elle n’existait plus»), vou regar as suas pétalas secas com uma pequena lágrima de adeus. 
sinto-me romântica por ter uma orquídea no quarto.


(Wild Orchids)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Jean Renoir


preferir: v.tr. 1 dar preferência a; dar primazia a; escolher; 2 ter predileção por; gostar mais de; 3 antepor (Do lat. vulg. *praeferere, por praeferre, «levar adiante»)

Dicionário da Língua Portuguesa 2009, Porto Editora


levei adiante a convicção de que tenho uma predileção/dou primazia/escolho/gosto mais de Jean Renoir do que. há razões racionais (passo o pleonasmo) e irracionais para se preferir algo ou alguém ao resto do mundo que são as outras coisas/os outros. quando criança, tinha uma dificuldade imensa em tomar decisões no campo das preferências, dizer “o que mais gostava, acima de tudo”: o prato preferido, a cor, o desenho animado, o livro, o mano ou a mana. só tinha um peluche preferido, mas isso é porque ele não me largava, dormia na minha cama e colava-se aos meus braços para todo o lado. um chato. de resto, foi com o tempo que ganhei alguma coragem para decidir “os mais que tudo” da minha vida, e o que me dá maior gozo é notar que este fenómeno de (e desculpem se me repito) gostar mais de, funciona genuinamente numa base de irracionalidade, deixando quase de lado a racionalidade. sinto-me muito mais confortável na solidão que é responder «porque sim» do que deixar correr um rio de fundamentos (são incontáveis), para que se perceba o porquê. não há um porquê, há a irracionalidade íntima da preferência. 
já li (muito), escrevi, e falei sobre ele, noutras circunstâncias. e que maravilha é agora dissertar apenas sobre a natureza da preferência, esse "não ter que falar", mas sentir apenas no paladar o doce prazer do seu nome.




quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

a sua música chegava ao céu

- que música é esta?
- Bach. Sebastien Bach.
- é bonita.

Tystnaden, Ingmar Bergman


há dias comentava com alguém que se me confrontassem com a pergunta "qual o teu compositor favorito?", no imediato, eu responderia Bach. não sei se é pela beleza do seu nome, uma espécie de som cheio que nos fica na boca ao pronunciar um erre suspirado, incompleto pela não junção do céu da boca com a língua. talvez seja o nome, sim. afinal, a forma como se diz o nome tem um pouco de metáfora da forma como se recebe a sua música (a do autor, digo), uma quase junção entre o Céu e a Terra, um suspiro celeste que chega ao coração e impede a fala, não concretiza a palavra, porque o silêncio se interpõe, esse erre imperfeito que não deixa a língua roçar a ogiva do palato. além desta possível razão, também é um facto que tive o meu primeiro contacto com a biografia de Bach aos catorze anos, na biblioteca do meu pai, num livro chamado "Grandes Vidas Grandes Obras", das selecções do Reader's Digest. ainda me lembro do título da sua biografia constante neste livro grosso e tão cheio de outras: A sua música chegava ao céu. a biografia de Mozart e de Beethoven também figuravam entre as ilustres nesse bloco maciço que eu invejava não ter escrito, mas foi Bach que me atraiu instintivamente, um título que me chamou baixinho, como se faz quando queremos contar um segredo. depois de conhecer a vida de Bach, conhecer a sua música foi o esplendor de um gosto anteriormente infundado e cego. e hoje, que mais uma vez me encontrei com ela n'O Silêncio de Bergman, voltei a ter aquele impulso suave, aquela certeza vaga de que ele é o meu favorito. Bach(rrrrr...).


 (Tystnaden, Ingmar Bergman)