É a primeira vez que publico no blog uma entrevista conduzida por mim (sem que, no caso, houvesse necessidade de perguntas). Sempre o tomei como um espaço de fragmentos concentrados de palavra, anotações do inexprimível, fixações de vertigens, como diz Rimbaud na epígrafe deste espaço. Hoje faz sentido publicar, precisamente aqui, uma breve conversa com José Tolentino Mendonça, sobre Pier Paolo Pasolini e dois filmes – Che cosa sono le nuvole?/O Que São as Nuvens? e Uccellacci e uccellini/Passarinhos e Passarões –, exibidos na Cinemateca, com sua apresentação, no passado dia 1 de junho, Dia da Criança. Talvez seja só uma bela coincidência. “Que coisa são as nuvens” é o título do novo livro de crónicas de Tolentino Mendonça, aquelas que publica no Expresso, e é também o mote dos textos que procuram tocar matérias mais próximas do céu.
«...a pouco e pouco foi desaparecendo toda a massa da nuvem,
fiada diante dos meus olhos por uma roca em mão invisível.»
Johann Wolfgang Goethe, O Jogo das Nuvens
O que é que aquele momento de admiração [no filme Che cosa sono le nuvole?], em que as marionetas olham para o céu, descobrem as nuvens, determina enquanto linha de princípio para as suas crónicas?
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Che cosa sono le nuvole? |
Um dos aspetos que, para mim, são mais representativos da figura muito rica de Pier Paolo Pasolini, é de facto ele assumir-se como uma espécie de mestre, de hermenêuta da própria realidade que constrói com o seu cinema, a sua poesia, os seus escritos, as suas crónicas, as suas intervenções públicas... Ele constrói uma espécie de maiêutica socrática, a fim de ajudar os leitores, os espectadores, aqueles que o escutam, que o acompanham, a fazer um determinado percurso, profundamente envolvente, no sentido da descoberta: a descoberta do enigma do mundo. Mas essa descoberta é sempre feita – mesmo quando envolve uma ironia, uma desconstrução ou uma crueldade – com a finalidade do maravilhamento. Descobrir a indizível beleza do criado, descobrir essa apaixonada, e jamais expressa, beleza que é existirmos à face da terra. E isso, que é uma coisa sem preço, Pasolini insistiu muito que fosse uma marca persistente de todo o seu trabalho. Eu tive a sorte de contactar com a obra de Pasolini muito cedo. Na primeira vez que tive uma estadia em Roma, a fazer os meus primeiros estudos, surgiu a possibilidade de ver uma integral do seu cinema, e começar uma leitura de grande parte da sua obra, que acabou por ser extraordinariamente formativa, para mim e para a minha forma de escrever e de entender o que deve ser o papel de um escritor e de um poeta que escreve num jornal, também. E percebi com ele que o trabalho, no fundo, é sempre partir de uma imagem, uma imagem que está o mais próxima de nós, e levar essa imagem até ao mais longe que conseguirmos. É isso que ele faz no filme [Che cosa sono le nuvole?], começando com a representação de uma peça de Shakespeare, Otelo, que é interrompida, e depois, levando essa interrupção, que é uma reflexão sobre o destino do homem, até ao mais alto que ele pode – na exclamação final do Totó: “Ah magnífica, indizível, arrepiante beleza do criado.”
Uccellacci e uccellini, esse filme-parábola, é também uma observação assombrosa da realidade. Como se apresenta aqui a dimensão da proximidade do “indizível”?
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Uccellacci e uccellini |
Uccellacci e uccellini, cujo título em português é Passarinhos e Passarões, é uma grande parábola. Pasolini dizia que este era, de todos os seus filmes, aquele de que mais gostava, e isso é muito interessante, porque era o filme mais pobre e mais belo que ele tinha feito. É a primeira vez que trabalha com o Totó – e queria muito fazê-lo – e é também o primeiro filme em que o Ninetto Davoli tem um papel de protagonista. Ele já tinha entrado, em 1964, no Evangelho Segundo São Mateus, fazendo um pequeno papel, e aqui entra num dos papéis principais, dois anos depois (1966). É um filme fantástico em duas dimensões. Por um lado, é um filme que diz muito da posição desse intelectual e desse poeta extraordinário que foi Pasolini, ou seja, alguém que soube ler a nossa modernidade, esta aparência de progresso, de liberalismo, de capitalismo... como uma nova forma de fascismo. E isso, no seu tempo, foi muito mal compreendido, Pasolini foi muito atacado, considerado niilista, dizendo-se que era uma coisa exagerada ele comparar estes tempos de democracia liberal aos tempos negros e opressivos do fascismo. Mas tudo o que ele dizia e pensava, sobre o modo como hoje somos levados a viver, obrigados a viver, não estava longe de uma verdade. Ele fazía-nos pensar. Pode parecer exagerado dizer que nós vivemos de novo no fascismo, no entanto, esta é uma provocação que nos obriga a pensar, e esse olhar está muito presente nesta fábula/parábola, ou conjunto de parábolas, que ele constrói no Passarinhos e Passarões. Depois, há outro lado, a maiêutica persistente dos seus filmes, que me toca particularmente. Não há obra nenhuma sua, quer seja um poema, uma crónica de jornal, um filme, em que ele não tenha pontos de fuga, observatórios para um nível mais profundo da realidade, e, nesse sentido, Pasolini mostra como um poeta é, ao mesmo tempo, um sismógrafo, que vai ao fundo revelar as tensões e os movimentos quase imperceptíveis da própria vida, e um astrónomo, um contemplativo, alguém que vive com essa dimensão de um olhar macro sobre a realidade, permitindo que ela respire de uma outra forma. Também aí, Uccellacci e uccellini é um filme extraordinário... O diálogo com a prostituta, e vários outros momentos ao longo do filme, são fragmentos do assombro que, na verdade, redimem a própria vida.
O que é que lhe fascina em Pasolini, na sua multiplicidade criativa?
Pasolini deixou uma obra interminada e interminável. E é interessante pensar como este homem que acabou por viver tão pouco, deixou uma obra tão vasta. Ele era uma máquina de pensar o mundo, uma grande máquina hermenêutica, e é apaixonante descobrir isso. A mim fascina-me muito, na personalidade de Pasolini como criador, o facto de ele ser tantas coisas – cineasta, escritor, jornalista, poeta, pensador da realidade italiana e ocidental –, parecer que são coisas muito diferentes, e de repente percebermos que é uma coisa só. A poesia dele é só uma, e é essa que se expressa nos filmes, nas posições públicas, no seu silêncio, no corpo, e finalmente, nos seus poemas. Isto é muito forte, porque mostra a rara unidade vital, de alguém que procurou abraçar o mundo de formas diferentes e de um único modo.
E “que coisa são as nuvens” para si?
(Silêncio) As nuvens... são aquilo que é maior do que nós e nos acompanha.
[Excertos desta entrevista foram originalmente publicados no DN]