sexta-feira, 24 de junho de 2016

"O espectador vai mudando o seu pacto com o filme, à medida que o vê"


A minha entrevista com José Luis Guerín, sobre A Academia das Musas, de onde foram tirados excertos para A Grande Ilusão, na Antena 2, aos 39 minutos da Ronda da Noite:



A Academia das Musas (2015)
Coeur fidèle (1923) 
(Inês Lourenço) Pareceu-me encontrar neste A Academia das Musas uma ordem inversa ao Dans la ville de Sylvia (2007), ou seja, nesse filme as musas são passivas, ignoram o atributo que se lhes dá, e aqui, em A Academia…, a palavra é o grande poder das musas, e confere um movimento cinematográfico que já não é pedido à câmara – quase sempre fixa. Compreende o discurso, a palavra, como uma forma de movimento?
(José Luis Guerín) É exactamente assim. Vamos ver o que posso acrescentar… Diria que a relação entre os dois filmes é algo inconsciente, ou seja, algo que não organizei conscientemente. Mas é verdade que em Dans la ville de Sylvia não existe a noção de personagem, nem de mulheres nem de homens. Há alguém que observa, como uma espécie de sonhador, e que está à procura de uma imagem. Mas esse alguém que observa nem sequer tem um nome, não sabemos a sua profissão, não sabemos nada sobre ele – são relações que se estabelecem entre presenças, através de olhares. Por outro lado, em A Academia das Musas, temos personagens verdadeiras, de carne e osso, e, apesar do que diz o título, não há nenhuma musa, são todas mulheres muito reais. Além disso, ao passo que A Cidade de Sylvia é um filme essencialmente visual e sonoro, desprovido de palavras, neste as palavras têm protagonismo. Assim, o movimento que interessa em A Academia das Musas é o do pensamento, das emoções. E eu sempre achei que o movimento mais cinematográfico que há é aquele em que consegues transmitir ao espectador o que pensa a personagem que filmas. Isso é um movimento privilegiado, e para captá-lo tento imobilizar a câmara, porque, sendo um movimento interior, se moves os dois – a câmara e o outro – obstruem-se entre si.

A certa altura do filme, diz-se que “ensinar é seduzir”. O cinema é também um ato de sedução?
Depende de como entendemos esse aspeto, porque a mim incomoda-me muito quando me querem seduzir num filme através de enormes artifícios, isso põe-me na defensiva. Todos queremos, antes de mais, ser tratados como pessoas inteligentes, e há filmes que subtraem enfaticamente as coisas… Trata-se essencialmente de estabelecer uma relação com o espectador, não necessariamente de sedução.

Isso também se sente nas aulas. O professor tem essa intenção sedutora, mas elas encontram formas de o refutar, de combater o encantamento. E é curioso que o sentido do confronto, ao longo de todo o filme, se percebe muito através dos planos que posicionam os rostos na condição ora conflituosa ora intimista.
Também foi por uma questão económica que decidi centrar-me nos rostos. Este foi um filme que fiz quase sem nada, apenas com a ajuda da minha operadora de som, e por isso, agrada-me muito controlar tudo o que se vê na imagem. Não há aqui luz artificial, nem direção artística, nem sequer tinha direito a mover os objectos nos espaços onde filmava. Então, o que é que eu podia controlar? Apenas a pequena superfície dos rostos das minhas personagens.

E os rostos surgem muitas vezes através de vidros, como se, ao mesmo tempo, estivessem protegidos dentro de uma bolha, e essa camada vítrea os tornasse mais belos, mais próximos da ideia de cinema, ou seja, algo que se interpõe entre a realidade e o espectador. Esta opção formal tem também algum sentido de economia de rodagem?
Sim, as imagens com reflexos são um pouco como o cinema, porque vês coisas que não estão ali, vês imagens ilusórias. O motivo que me levou a filmar atrás dos vidros, a princípio, era mais por estes serem uma chave observacional, documental. E uma vez que precisava de passar do espaço público que é a sala de aula para o espaço privado, sem romper a lógica observacional, pareceu-me que não tinha direito a entrar no interior, que devia permanecer de fora. Isso facilitava também o trabalho dos atores, que, embora sejam muito bons, não são profissionais. Então, o facto de eu não invadir os seus espaços tranquilizava-os. Depois, na montagem – porque é um filme que foi feito alternando fases de rodagem e montagem – pareceu-me muito interessante a ideia de espaço que dava nos seus reflexos. Vejamos, sendo um filme sem planos descritivos dos espaços e tão concentrado em primeiros planos, a única referência ao que está à volta é dada pelos seus reflexos. Às vezes não são mais do que manchas de cores desfocadas, mas a partir dessas manchas podes convocar um imaginário e o movimento de uma cidade, o urbanismo, a arquitectura, uma paisagem, afinal. Gosto muito da ideia, é como se entrassem na mesma imagem a figura e a paisagem, de uma maneira muito sintética, invocando o imaginário do espectador para criar essa imagem.

Lembrei-me muito de alguns planos do Coeur fidèle (1923), de Jean Epstein, com a paisagem a fundir-se no rosto da mulher…
Pois deixa-me dizer-te que Jean Epstein é um criador muito importante para mim.

A Academia das Musas, sendo uma “experiência pedagógica”, como é anunciado no filme, começou como um projeto puramente académico ou foi, desde logo, qualquer coisa de raiz cinematográfica?
O filme não partiu de nenhuma ideia preconcebida. Eu tive o convite do professor e suas alunas a experimentar cinematograficamente estas aulas. E fui com a minha pequena equipa, mas sem a noção de que daí iria resultar um filme, bastava-me que fosse uma experiência de pôr a palavra em cena. Mas, pouco a pouco, na alternância entre dias de filmagem e de montagem, fui descobrindo o gosto por algumas personagens que vão evoluindo, e pensando que afinal podia dar lugar a uma curta-metragem ou a uma vídeo-instalação, diferentes coisas… quer dizer, o filme foi tomando consciência de si mesmo à medida que se ia filmando, daí que não tenha sido possível pedir nenhum subsídio às instituições, porque não queria comprometer-me com nada.

De algum modo, isso também lhe deu mais liberdade artística.
Claro. Até na realidade linguística que o filme mostra, em que se fala italiano, espanhol, sardo, catalão… isto é responder à lógica orgânica das personagens. É um filme muito latino, quiçá mediterrânico.

Como é que dirigiu estas atrizes?
O meu trabalho foi muito discreto, foi um incentivar das situações, dar umas pautas, criar a atmosfera e a situação para que fluíssem da melhor maneira possível as suas interpretações. Mas nunca disse o que elas tinham exactamente que fazer ou dizer, porque passa mais pela lógica de criar um pedaço de vida em frente à câmara.

Sendo toda a sua obra muito marcada pelo documentário, que acaba por contaminar também esta ficção, quais são, para si, as fronteiras que separam as duas coisas?
Em última instância, para mim, a diferença mais valiosa está na verdade dos corpos. Se vamos contar a tua história, tu podes interpretar-te a ti mesma, e mais ninguém te substitui, seja ou não atriz. Eu tento que A Academia das Musas não seja mostrada em festivais de cinema documental ou não-ficção, porque as personagens que criámos são imaginárias. É verdade que o professor na vida real é professor, a sua mulher é sua mulher, e as suas alunas são suas alunas, mas a partir daí acaba-se o paralelismo com a realidade. Digamos que é uma ficção que eu nunca poderia ter feito sem experiência prévia no documentário, e o que teve em comum com este é que eu não sabia onde me ia levar. É diferente da ficção sujeita a um guião preciso. No caso, tinha somente a ver com a interação com os atores.

A raiz da ficção também acaba por estar no contexto destas aulas, em que se fala de literatura e poesia.
Exacto. No momento em que percebi que isto era um filme, vi que só podia passar pela fabulação, é justamente disso que se fala. Nas primeiras cenas, passadas na sala de aula, anunciam-se os temas que vamos ver depois: o amor adúltero dos trovadores, a musa que lê frente à musa que escreve… E há uma mutação progressiva, portanto, outra coisa que me agrada muito é conservar distintas formas de movimento, por isso o filme surge como um documentário e evolui para uma comédia de guerra de sexos, e em seguida quase um melodrama… assim, do mesmo modo, o espectador vai mudando o seu pacto com o filme, à medida que o vê.