domingo, 16 de abril de 2017

Je me souviens

Lembro-me das tardes sem horas, quando no ar se sentia o aroma a princípio. Primavera. Ressurreição. E lembro-me de, em vez de flores, colher ervas para colocar dentro de uma jarra. Queria dar-lhes um contexto aristocrático (assim considerava o meu quarto), mesmo que andasse enredada em pensamentos contra quaisquer manifestações de nobreza. Queria permitir que essas ervas passassem de bolcheviques do quintal a czares de uma secretária cheia de livros com lombada velha: ideia contraditória com as publicações do meu pai que a ornamentavam. Entre calhamaços de História e romances clássicos, os panfletos de folha amarelada eram os meus preferidos. Pelo menos nessa Páscoa. Democracia burguesa e ditadura do proletariado, de Lenine, ou Catecismo do Trabalhador, de Paul Lafargue. Divertia-me a ler coisas que não tinha idade para compreender, mas que sabia dizerem algo sobre os interesses daquele a quem tinham pertencido. Lembro-me de não dar pelas horas que passava entre o “capital” de que se falava nesses livrinhos e fatias de folar. Acima de tudo, lembro-me do cheiro a princípio que andava no ar, e do outro a antigo que emanava das folhas. E lembro-me das ervas que, na jarra, me pareciam mais belas do que as flores. Ali, descontextualizadas. Por essa altura também, já apreciava a feliz anarquia de Michel Simon. O cinema que a observava.
Isto tudo assim, de uma vez. Eterna Primavera.



Le vieil homme et l'enfant (1967), Claude Berri