Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Quem, dentre amigos, tão amigo
Para estar no caixão comigo?
Quem, em meio ao funeral
Dirá de mim: - Nunca fez mal...
Quem, bêbedo, chorará em voz alta
De não me ter trazido nada?
Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?
Quem, oculta em véus escuros
Se crucificará nos muros?
Quem, macerada de desgosto
Sorrirá: - Rei morto, rei posto...
Quantas, debruçadas sobre o báratro
Sentirão as dores do parto?
Qual a que, branca de receio
Tocará o botão do seio?
Quem, louca, se jogará de bruços
A soluçar tantos soluços
Que há de despertar receios?
Quantos, os maxilares contraídos
O sangue a pulsar nas cicatrizes
Dirão: - Foi um doido amigo...
Quem, criança, olhando a terra
Ao ver movimentar-se um verme
Observará um ar de critério?
Quem, em circunstância oficial
Há de propor meu pedestal?
Quais os que, vindos da montanha
Terão circunspecção tamanha
Que eu hei de rir branco de cal?
Qual a que, o rosto sulcado de vento
Lançará um punhado de sal
Na minha cova de cimento?
Quem cantará canções de amigo
No dia do meu funeral?
Qual a que não estará presente
Por motivo circunstancial?
Quem cravará no seio duro
Uma lâmina enferrujada?
Quem, em seu verbo inconsútil
Há de orar: - Deus o tenha em sua guarda.
Qual o amigo que a sós consigo
Pensará: - Não há de ser nada...
Quem será a estranha figura
A um tronco de árvore encostada
Com um olhar frio e um ar de dúvida?
Quem se abraçará comigo
Que terá de ser arrancada?
Quem vai pagar o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.» Rimbaud
terça-feira, 24 de dezembro de 2013
domingo, 15 de dezembro de 2013
rebellious
«I could not help it; the restlessness was in my nature; it agitated me to pain sometimes. Then my sole relief was to walk along the corridor of the third story, backwards and forwards, safe in the silence and solitude of the spot, and allow my mind’s eye to dwell on whatever bright visions rose before it—and, certainly, they were many and glowing; to let my heart be heaved by the exultant movement . . . and, best of all, to open my inward ear to a tale that was never ended—a tale my imagination created, and narrated continuously; quickened with all of incident, life, fire, feeling, that I desired and had not in my actual existence. It is in vain to say human beings ought to be satisfied with tranquility: they must have action; and they will make it if they cannot find it. Millions are condemned to a stiller doom than mine, and millions are in silent revolt against their lot. Nobody knows how many rebellions besides political rebellions ferment in the masses of life which people earth. Women are supposed to be very calm generally: but women feel just as men feel; they need exercise for their faculties, and a field for their efforts as much as their brothers do; they suffer from too rigid a restraint, too absolute a stagnation, precisely as men would suffer; and it is narrow-minded in their more privileged fellow-creatures to say that they ought to confine themselves to making puddings and knitting stockings, to playing on the piano and embroidering bags. It is thoughtless to condemn them, or laugh at them, if they seek to do more or learn more than custom has pronounced necessary for their sex.»
Jane Eyre, Charlotte Brontë
Jane Eyre, Robert Stevenson (1943)
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
uma nuvem sem céu
estou suspensa na passagem dos dias. sou uma nuvem vadia que
anda por terra. falta-me o céu. falta-me estar mais perto do brilho do sol e da
esperança das estrelas. falta-me esse chão-ao-contrário. sinto-me menos fofa, menos branca, cada vez mais magra, e, curiosamente, mais pesada. a dieta de expectativas
desregulou-me. preciso de subir para o meu chão, ser novamente leve e subtil ao toque. branca. ser,
afinal, apenas uma nuvem no seu lugar devido.
Perfume, Francesco Furini (1603-1646)
domingo, 8 de dezembro de 2013
(sem) querer
«- Quer fazer o favor de me dar um cigarro?
Seria fácil desempenhar o papel de ingénua. Mas era culpada, porque o meu pedido precipitou os acontecimentos. E eu tinha disso uma leve suspeita, ainda que para mim o não confessasse. (...) Bem no íntimo, sabia-o, mas não era suficientemente consciente para que o pudesse considerar um conhecimento.»
A colina da saudade, Han Suyin
Love is a Many-Splendored Thing, Henry King, Otto Lang
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
fingir
escondo metade do olhar debaixo da aba do chapéu. finjo seduzir
uma câmara. as palavras, essas diluem-se no copo de vinho. silence... quel
plaisir! estou vestida a rigor. não partilho com ninguém a minha cerimónia
pessoal. o que penso não se vê. tenho o chamado 'instinto do escuro'. inventei eu a expressão. gosto
de cinema.
(Bette Davis em Of Human Bondage)
sábado, 16 de novembro de 2013
fuso horário: cinema
«(...) não era o tipo de mulher que organiza festas ou é o centro de uma multidão. Continuava a ser a rapariga "convidada pelos outros". (...) Chegava a ir cinco vezes [na verdade, mais] ao cinema na mesma semana. Nunca se deitava antes da meia-noite ou até mais tarde [muito mais tarde]. (...) por vezes, sentia um certo nervosismo, uma vaga insatisfação, que durante um tempo lhe estragava o prazer de viver. Por exemplo, estava a preparar-se para ir para a cama, muito satisfeita depois de uma ida ao cinema, e de repente vinha-lhe a ideia, "mais um dia que passou". E aí o tempo contraía-se e parecia-lhe ter sido apenas um sopro desde que saíra da escola e viera para a cidade (...).»
A Erva Canta, Doris Lessing
(La nuit du carrefour, J. Renoir)
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
quarta-feira, 30 de outubro de 2013
un étrange voyage
comboios. adoro comboios nos filmes! hoje tive o gosto de conhecer mais um (filme) - Un
Étrange Voyage – com esse, chamemos-lhe, acessório temático. mas o percurso fazemo-lo a pé, ao lado de
Pierre, tal como a sua filha Amélie, ao
longo da linha de caminhos de ferro que liga Troyes a Paris, que é como quem
diz, um percurso a pé dentro de nós mesmos, detetives da interioridade. o cinema
permite-nos isso: transportar os movimentos (e, neste caso, o movimento
aparente) na tela para dentro de nós. todos procuramos algo, mesmo que não seja a maman do “pequeno” Pierre ou a Miss Froy do filme The Lady Vanishes (Hitchcock). todos procuramos,
além de pessoas, coisas, sentidos, “a melhor maneira”... Pierre não encontrou a
mãe*, mas encontrou-se com a filha. e quanto a nós, todos nos procuramos através da
procura do outro. é tão simples quanto verdadeiro. mas insisto: o comboio é o mais belo símbolo da viagem.
(reservo-me ao direito de expressar apenas este aforismo sobre o filme. há muito mais. muito mais a dizer. sempre.)
(reservo-me ao direito de expressar apenas este aforismo sobre o filme. há muito mais. muito mais a dizer. sempre.)
vou montar carris à volta do coração.
*(ver o filme)
Un Étrange Voyage (1980), Alain Cavalier
sexta-feira, 25 de outubro de 2013
(talvez) num filme de Ozu
faço parte da ordem e nudez dos espaços arrumados. sou a
jarra sem flores a ornar um móvel liso. não posso ser mais do que essa jarra
branca.
sem flores.
branca.
sábado, 19 de outubro de 2013
Vinicius de Moraes
Cem anos após o nascimento de Vinicius de Moraes, recordo-o com um poema sobre a cerimónia da morte:
A HORA ÍNTIMA
terça-feira, 8 de outubro de 2013
leitor
'«Lê-nos um poema.»
Tu lias e, para nós, eram ensinamentos sobre o mundo, que não nos vinham do poeta, mas sim da tua sabedoria. E os infortúnios dos amantes e os choros das rainhas tornavam-se grandes coisas tranquilas. Morria-se de amor com tanta calma, na tua voz...'
Correio do Sul, Saint-Exupéry
'On aime une histoire parce qu’on aime le conteur. La même histoire, contée par un autre, n’offre aucun intérêt.'
Ma Vie et Mes Films, Jean Renoir
(imagem: Bright Star, Jane Campion)
quarta-feira, 25 de setembro de 2013
Carta ao Espírito
Querido Jean, hoje foi um dia tramado, antes de acontecer.
Depois aconteceu e eu fiquei com um hematoma de felicidade no peito. Uma
espécie de scarlet letter que, em vez
de simbolizar a dor, expressa o júbilo interior. Eu sei que tu gostas que isto
seja só cá entre nós, mas precisava de uma carta aberta para dizer aquilo que
muitos te disseram, e ao qual a Ingrid Bergman ofereceu um brilho nos olhos e
um sorriso nas palavras: “we love you, Jean”.
Já ouço a tua gargalhada, daí desse lugar, onde o eco se multiplica
em ondas sonoras do teu humanismo.
Até sempre,
até já.
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
chamada livre
- olá. liguei para falar de cinema.
- em que filme deixaste hoje o coração?
- num que não fala de amor.
- e esse filme existe?
- as pessoas vêem sempre amor em tudo, por isso já não sabem
distinguir as linguagens. se um filme fala do vento, logo vem a tese de que o
vento aproxima os amantes. o vento é o vento, e a sua matéria é tão ou mais
complexa que o amor.
- e tu, vais à procura do quê no cinema?
- de mim.
quinta-feira, 5 de setembro de 2013
hábitos adquiridos
já não bebo
vodka nem leio
Virginia Woolf. deixei de
lavar a chávena de café: gosto de ver
a linha da porção ingerida. já não
acordo a meio da noite para vigiar se
o peluche da cama caiu ao chão. desisti de
regar a planta: a sua morte está
anunciada. já não falo
com gatos nem me sento
no telhado. amanhã torno à leitura de Virginia Woolf (cedência exclusiva) mas não
volto a beber vodka, a lavar a
chávena de café, a acordar a
meio da noite, a regar a
planta, a falar com
gatos ou sentar-me
no telhado. bem… só falar com gatos. o resto
mantém-se.
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
A História Mais Bela do Mundo - Parte II
«A minha imaginação era um espelho gasto. Ou não reflectia, ou reflectia só com um esbatido triste, as figuras com que eu me esforçava por povoá-la. As personagens da narrativa não se animavam ou tornavam maleáveis com qualquer calor que eu acendesse na minha forja intelectual. Nem tomavam o rubor da paixão ou a suavidade do sentimento, mas conservavam a rigidez de corpos mortos, fitando-me com um sorriso fixo e espectral de desafio desdenhoso.»
Girl at Mirror, Norman Rockwell
domingo, 25 de agosto de 2013
The Street Girl
You don't want to marry me honey,
Though just to hear you ask me is sweet;
If you did you'd regret it tomorrow
For I'm only a girl of the street.
Time was when I'd gladly have listened,
Before I was tainted with shame,
But it wouldn't be fair to you honey;
Men laugh when they mention my name.
Back there on the farm in Nebraska,
I might have said yes to you then,
But I thought the world was a playground;
Just teeming with Santa Claus men.
So I left the old home for the city,
To play in its mad, dirty whirl,
Never knowing how little of pity,
It holds for a slip of a girl.
You think I'm still good-looking honey!
But no I am faded and spent,
Even Helen of Troy would look seedy,
If she followed the pace I went.
But that day I came in from the country,
With my hair down my back in a curl;
Through the length and the breadth of the city,
There was never a prettier girl.
I soon got a job in the chorus,
With nothing but looks and a form,
I had a new man every evening,
And my kisses were thrilling and warm.
I might have sold them for a fortune,
To some old sugar daddy with dough,
But youth called to youth for its lover,
There was plenty that I didn't know.
Then I fell for the "line" of a "junker",
A slim devotee of hop,
And those dreams in the juice of a poppy;
Had got me before I could stop.
But I didn't care while he loved me,
Just to lie in his arms was a delight,
But his ardour grew cold and he left me;
In a Chinatown "hop-joint" one night.
Well I didn't care then what happened,
A Chink took me under his wing,
And down there in a hovel of hell --
I laboured for Hop and Ah-Sing
Oh no I'm no longer a "Junker",
The police came and got me one day,
And I took the one cure that is certain,
That island out there in the bay.
Don't spring that old gag of reforming,
A girl hardly ever goes back,
Too many are eager and waiting;
To guide her feet off of the track.
A man can break every commandment
And the world will still lend him a hand,
Yet a girl that has loved, but un-wisely
Is an outcast all over the land.
You see how it is don't you honey,
I'd marry you now if I could,
I'd go with you back to the country,
But I know it won't do any good,
For I'm only a poor branded woman
And I can't get away from the past.
Good-bye and God bless you for asking
But I'll stick out now till the last.
Though just to hear you ask me is sweet;
If you did you'd regret it tomorrow
For I'm only a girl of the street.
Time was when I'd gladly have listened,
Before I was tainted with shame,
But it wouldn't be fair to you honey;
Men laugh when they mention my name.
Back there on the farm in Nebraska,
I might have said yes to you then,
But I thought the world was a playground;
Just teeming with Santa Claus men.
So I left the old home for the city,
To play in its mad, dirty whirl,
Never knowing how little of pity,
It holds for a slip of a girl.
You think I'm still good-looking honey!
But no I am faded and spent,
Even Helen of Troy would look seedy,
If she followed the pace I went.
But that day I came in from the country,
With my hair down my back in a curl;
Through the length and the breadth of the city,
There was never a prettier girl.
I soon got a job in the chorus,
With nothing but looks and a form,
I had a new man every evening,
And my kisses were thrilling and warm.
I might have sold them for a fortune,
To some old sugar daddy with dough,
But youth called to youth for its lover,
There was plenty that I didn't know.
Then I fell for the "line" of a "junker",
A slim devotee of hop,
And those dreams in the juice of a poppy;
Had got me before I could stop.
But I didn't care while he loved me,
Just to lie in his arms was a delight,
But his ardour grew cold and he left me;
In a Chinatown "hop-joint" one night.
Well I didn't care then what happened,
A Chink took me under his wing,
And down there in a hovel of hell --
I laboured for Hop and Ah-Sing
Oh no I'm no longer a "Junker",
The police came and got me one day,
And I took the one cure that is certain,
That island out there in the bay.
Don't spring that old gag of reforming,
A girl hardly ever goes back,
Too many are eager and waiting;
To guide her feet off of the track.
A man can break every commandment
And the world will still lend him a hand,
Yet a girl that has loved, but un-wisely
Is an outcast all over the land.
You see how it is don't you honey,
I'd marry you now if I could,
I'd go with you back to the country,
But I know it won't do any good,
For I'm only a poor branded woman
And I can't get away from the past.
Good-bye and God bless you for asking
But I'll stick out now till the last.
Bonnie Parker
Fuye Dunaway, Bonnie and Clyde (1967)
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
multiplicação
penso-te enquanto te espero. espero-te enquanto memorizo o
que vou dizer à tua chegada, para te fazer sentir a inteligência do meu
acolhimento. como se depois me faltasse a composição para frases longas, ou
como se o diálogo fosse dirigido só por mim. realizo um filme durante a espera. no momento, grande será o prazer da espontaneidade a percorrer-me e a derrubar
todas as palavras encaixadas, permanecendo apenas uma. antes de sermos dois.
bonjour
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
de olhos fechados
Fechei os olhos, tal como pediu.
- Estão fechados? - perguntou. - Não vale espreitar.
- Estão fechados - confirmei.
- Mantém-nos fechados - disse ele. - E não pares agora. Desenha.
(...)
Depois ele disse:
- Acho que já chega. Acho que conseguiste. Dá uma olhada. O que te parece?
Mas eu tinha os olhos fechados. Apeteceu-me continuar assim durante mais um pouco. Achei que era uma coisa que devia fazer.
- Então? - perguntou ele. - Estás a ver?
Ainda tinha os olhos fechados. Estava em minha casa. Sabia isso. Mas não sentia que estivesse dentro de lugar nenhum.
- É extraordinário - respondi.
Catedral, Raymond Carver
- Estão fechados? - perguntou. - Não vale espreitar.
- Estão fechados - confirmei.
- Mantém-nos fechados - disse ele. - E não pares agora. Desenha.
(...)
Depois ele disse:
- Acho que já chega. Acho que conseguiste. Dá uma olhada. O que te parece?
Mas eu tinha os olhos fechados. Apeteceu-me continuar assim durante mais um pouco. Achei que era uma coisa que devia fazer.
- Então? - perguntou ele. - Estás a ver?
Ainda tinha os olhos fechados. Estava em minha casa. Sabia isso. Mas não sentia que estivesse dentro de lugar nenhum.
- É extraordinário - respondi.
Catedral, Raymond Carver
sábado, 27 de julho de 2013
paisagem invariável
neste lento
fim de tarde
vejo da minha
janela
as luzes que
(também lentamente)
se levantam a
tremer
do outro
lado do rio.
pergunto-me
se são de uma casa
de um
candeeiro de rua
de um
monumento importante
de um barco
de uma
festa.
são o que os
meus olhos pensarem.
penso em
tudo,
menos nas
hipóteses físicas da luz.
são desejos
que pintam a cidade
do outro
lado do rio.
(City Lights, Chaplin)
domingo, 14 de julho de 2013
o gato
essa penugem macia que faz de ti o mais apetecível dos toques desassossega
a vontade, quando não estás por perto. anda,
chega-te aqui. com uma mão no teclado e a outra pousada num dorso quente e delicado,
escrevo em suavidade de consciência. desconheço os caminhos que percorro,
enquanto tento as palavras certas, como a fruta madura que se colhe na época. é difícil encontrar o ponto intermédio entre o verde e o já podre. a frescura
escapa-me. mas com uma mão pousada no teu gracioso dorso, faço, tranquila, a
caminhada entre as árvores. porque é tão agradável escrever, mesmo que não se saiba
ao certo o quê. vejo ali um pêssego que me parece estar bom para colher. vou
correr para ele, mas, entretanto, não saias daqui. não deixes o lugar
literariamente cativo que é o simples estar ao alcance do meu toque.
(Pintura: Pierre-Auguste Renoir)
sábado, 6 de julho de 2013
responsabilidade
derramo calor pelos lençóis acostumados. vem, de longe, percorrer-me
uma aragem de sono. o eco da última frase que hoje li no livro à cabeceira, Memórias de Adriano, ainda
ressoa no espírito: “(…) Sentia-me responsável pela beleza do mundo.” sinto-me assim,
em plano de humanidade com Adriano. não pelo grande desígnio de que se autoinveste
um imperador, mas pela vontade do servo que ainda procura a beleza nos pequenos
canteiros da realidade. todos os dias tento trazer o máximo de flores para te
oferecer, num ato de responsabilidade por assegurar que os teus olhos verão um
pouco da beleza do mundo.
(pintura: Pierre-Auguste Renoir)
quinta-feira, 20 de junho de 2013
melancolia
«O seu dia a dia, normalmente uma espécie de alforreca, uma criatura invertebrada e informe, obtivera uma estrutura mesozoica. Avançava, com segurança, até com desenvoltura, em direção a um clímax, tal como numa peça, tal como um dia deveria avançar. Anthony temia o momento em que a espinha dorsal do dia se quebrasse, o momento em que, depois de ter conhecido a rapariga, ter falado com ela e ter acompanhado o seu riso à porta, tivesse de voltar às borras melancólicas de chávenas de chá e à crescente secura das sanduíches que sobrassem.»
segunda-feira, 10 de junho de 2013
segunda-feira, 3 de junho de 2013
a Lua fuma cachimbo
Berlim veio a Lisboa esta noite e
trouxe um último tango protagonizado por Ute Lemper. Repertório clássico da
artista, Last Tango in Berlin pedia um ambiente a meia-luz e um copo de whiskey,
porque como disse Lemper: “o pior inimigo do Tango é o amanhecer”. Pois que
durasse toda a noite, enquanto a Lua fuma o seu cachimbo. Entre Dans Le Port d’Amsterdam
e Ne Me Quitte Pas de Jacques Brel, poemas de Pablo Neruda e outras grandes
performances, foi igualmente recordada Marlene Dietrich. O chapéu, o jeito da
perna, o cachecol de penas, o fingimento do cigarro. Dietrich aqui e ali.
segunda-feira, 27 de maio de 2013
os livros que devoraram o meu pai
«(...) nós somos feitos de histórias, não é de a-dê-énes e códigos genéticos, nem de carne e músculos e pele e cérebros. É de histórias. O meu pai, tenho a certeza, perdeu-se nesse mundo e agora ninguém lhe consegue interromper a leitura. (...) Há inúmeros lugares onde um ser humano se pode perder, mas não há nenhum tão complexo como uma biblioteca. Mesmo um livro solitário é um local capaz de nos fazer errar, capaz de nos fazer perder. Era nisto que eu pensava enquanto me sentava no sótão entre tantos livros.»
Afonso Cruz
terça-feira, 21 de maio de 2013
dois
compro bilhetes para dois, sabendo que te vais sentar ao meu lado no(s) espetáculo(s). vens sempre, penso, não gastei o dinheiro em vão. vens sempre. talvez por vires sempre, sinto mais esta ausência isolada, no meio do sempre
que define a tua presença. já não penso no dinheiro do bilhete, nem pretendo
dá-lo a outra pessoa. vou voltar para casa e guardar na minha mala o dia em que
não vieste, borrifado com a amostra de perfume que me deram na loja.
segunda-feira, 6 de maio de 2013
é doce
quero fazer, deixa-me fazer. quero sujar e ser senhora da
bagunça. quero rir muito e misturar os ingredientes sem olhar às medidas
certas. quero errar a receita para repeti-la. quero farinha pelo ar e bigodes
de chocolate. quero provar com a ponta do dedo a minha invenção. quero que o
avental fique com as marcas da grande proeza. quero ver o bolo crescer
demasiado, porque pus fermento a mais. quero chegar ao fim, olhar em volta e tentar decifrar o sabor da aprendizagem.
segunda-feira, 29 de abril de 2013
o perfume do antigo
«Respirava de sala em sala, difundido como um incenso, este odor a biblioteca antiga, que vale por todos os perfumes do mundo.»
Terra dos Homens, Saint-Exupéry
terça-feira, 23 de abril de 2013
terça-feira, 9 de abril de 2013
domingo, 7 de abril de 2013
voz
quando lês para mim, aumentando, com vagar, o volume das
palavras silenciosas no papel, é como se mais nenhuma voz pudesse cumprir esse momento. ouvir-te é acreditar em todas as deliciosas mentiras que carregas ternamente no
timbre. tenho vontade de invocar o infinito, adormecer no berço tecido em promessas
que trazes pela voz. são tuas essas palavras que lês, não podem ser de mais
ninguém. és o autor. só tu as lês assim, para mim.
quinta-feira, 4 de abril de 2013
(sem título)
há uma altura em que as nossas razões emocionais se tornam
razões políticas. há uma altura em que a nossa dor individual é, na verdade,
uma dor coletiva. se mal suportamos aquilo que nos fere pessoalmente, como podemos resistir a toda a dor de um país? quais os limites da dor política? somos amados ou rejeitados? o amor social é tão antigo como a necessidade de comer.
quinta-feira, 28 de março de 2013
amor pela literatura
«(...) padecia de amor pela literatura. (...) Era da índole fatal desta doença substituir a realidade por um fantasma, de forma que Orlando, a quem a fortuna concedera todos os dons - pratas, roupa de cama e mesa, casas, criados, tapetes, camas em abundância - dissipava em névoa, com o simples gesto de abrir um livro, toda esta imensa acumulação. os nove acres de pedra que eram a sua casa desapareciam; desapareciam os cento e cinquenta criados de dentro; os seus oitenta cavalos de sela tornavam-se invisíveis; e levaríamos demasiado tempo a contar os tapetes, sofás, adornos, porcelanas, salvas, galhetas, rescaldeiros e outros bens móveis, muitos dos quais de ouro lavrado, que se evaporavam como um sopro de brisa marinha ao contacto com o miasma. Assim acontecia, e Orlando, sentado sozinho a ler, era um homem nu.»
Orlando, Virgínia Woolf
domingo, 17 de março de 2013
Le ballon rouge
quero um balão vermelho e viajar para o sul da imaginação, onde as ideias são mais quentes e há uma beira-mar de possibilidades.
imagens: Le ballon rouge, Lamorisse (1956)
segunda-feira, 4 de março de 2013
o sabor do sono
tento adormecer, coberta pelo calor do manto da escuridão,
uma flanela macia que se encosta ao ombro e roça na cara, para provar que todo
o corpo está resguardado. durmo em posição fetal, mas hoje não durmo. um fio de
luz invade o desnível entre as portadas velhas da janela, cuja madeira tomou a irregularidade
do tempo e do uso. é a luz dos candeeiros da rua, que observam a monotonia e o descanso das
pedras da calçada, humedecidas pelo orvalho. penso no gato que se esconde atrás do
caixote do lixo, no frio do abandono. ouço os meus pensamentos, sem os
verbalizar. conto os nomes das personagens dos filmes que vi hoje: Clive,
Barbara, Lambert, Armstrong, Vera, Blore, Owen… e do fluxo aleatório de pensamentos, passo para os sentidos. saboreio os morangos que vou
comer amanhã. neste exercício final para adormecer, sinto os teus lábios a
roubarem-me o mais doce dos morangos. acredito que já estou a dormir. posso abandonar
a escrita.
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
a História Mais Bela do Mundo
corria atrás da história mais bela do mundo. ela corria mais
depressa. olhava para trás e fazia aquele ar perverso, com um trejeito na boca : “não
me apanhas”. qual criança a brincar à apanhada, era o diabo da história mais
bela do mundo, que gozava comigo como se goza com um velhote que já não tem agilidade para acompanhar os malabarismos dos mais novos. senti-me terrivelmente velha. gritava o seu extenso nome, como se
lesse um tratado de posse: "História Mais Bela do Mundo, não fujas de mim, dá
uma oportunidade à minha humilde escrita, torna-a mais nobre com a tua beleza. vieste para mim." - ela
continuava a correr. e agora ria. ria muito. tanto que doía. acordei com a dor causada pela gargalhada da história mais bela do mundo.
enquanto ela viver no meu sonho, sei que não vai a lado
nenhum. tranquei a porta do sonho à chave. do lado de fora. (e um segundo antes de acordar)
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
invitation to dance
na valsa do nosso diálogo, não nos pisamos, não trocamos os
passos, não saímos do andamento. nascemos para falar um com o outro, como uma
melodia escrita para dançar. pois dancemos juntos.
(foi para isso que viemos ao
mundo.)
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
stop
ligo o rádio e giro o botão das frequências num gesto aleatório,
à espera de encontrar um silêncio fortuito a raiar no meio do turbilhão de sons
que se forma pela passagem de umas para as outras. procuro-o como quem quer ver os
espaços negros entre os fotogramas de uma película de cinema, como se abdicasse
da persistência retiniana para segurar um intervalo preto no olho. preciso de
encontrar esse silêncio, assim, a separar-se da esquizofrenia ruidosa. o contraste. um silêncio que, de tão abrupto, envergonhe quem o ouse quebrar. sentir que o
tempo parou, só para eu encher novamente os pulmões.
domingo, 3 de fevereiro de 2013
Renoir, je t'aime
estou à superfície das ideias, a tentar arrumar as lombadas
por ordem temática. há temas que pesam mais do que outros, e ideias mais
antigas do que outras. entre o peso e a idade de ambos, procuro organizar tudo
em função de um critério equilibrado entre a leveza e a juventude. assim, de
cada vez que escolho pensar, por exemplo, em realismo cinematográfico, tema pesado, tiro da prateleira a frescura
de uma ideia chamada Renoir.
sábado, 26 de janeiro de 2013
lugarzinho
às vezes sinto-me muito pequenina dentro do mundo. faz frio nesse espaço imenso que nos empurra de um lugar para outro, como o vento empurra as folhas na sua viagem ao longo da calçada gasta pelos passos indiferentes. há demasiado lugar, e eu, às vezes, gosto do lugarzinho. fico na minha chávena, só por uns momentos, para restabelecer o sentimento de grandeza. nem que seja a humana.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2013
planta do pé
Pousei a planta
do pé
na ponta dos
dedos da tua mão.
Estava
quente
(contra o
frio do meu pé)
Batem
horas certas
no relógio
de cuco que
trouxe da
casa da minha avó.
São cinco
horas
podiam ser
nove,
mas são
tempo.
Esse que
urge entre
o toque dos
nossos extremos.
Não sou como
as outras pessoas,
os pés são o
espelho da minha alma
(vem amanhã)
não me
compres sapatos
gosto de
estar nua para ti
até à alma.
domingo, 13 de janeiro de 2013
a meio da noite
tenho uma lamparina de azeite a
iluminar a espera. espero que acordes a meio da noite, quero contar- te o sonho
que tive. enquanto procuro as melhores palavras para começar, observo-te: só
peço a Deus que me castigue, se me atrever a perturbar a tranquilidade do teu
semblante. e neste impasse divino, já esqueci o sonho. durmo com um anjo. espreito pela janela, para conferir se a noite
ainda faz de cenário a este momento. apago a lamparina e mando embora a espera,
que se perde numa linha de fumo. não faço barulho, não me mexo, vejo-te até no
escuro.
durmo com um anjo.
sábado, 12 de janeiro de 2013
segunda-feira, 7 de janeiro de 2013
As Casas
«(…) O ritmo de qualquer universo está configurado numa casa.
Ela está exposta aos elementos, ao sol, à chuva, ao vento, a todas as estações;
ao estio mais abrasador e ao inverno mais inclemente. Ao transpor a porta da
casa, (…) sentimos os cheiros habituais, reconhecemos algo como uma placenta de
onde provimos e nos sentimos protegidos e de novo ligados num lugar
inexpugnável. Podemos aliviar o rosto da última máscara.»
Inês Lourenço, Ephemeras
a casa com paredes é a do voltar sempre, o lugar das certezas do eu. mas a casa é também quando descobrimos a fechadura que corresponde à nossa chave. trancamos a porta para sermos a múltidão em dois corpos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)