quinta-feira, 24 de maio de 2012

fica


há um pássaro dentro de mim. às vezes sou o  céu, às vezes sou a árvore, outras o ninho ou então a gaiola. ser-se imenso, ser-se suporte, ser-se conforto ou ser-se prisão são quatro estados. se sou o céu, tudo é espaço que cede espaço a mais espaço, tudo é liberdade; sou respiração colorida. voa voa, que as tuas asas não esgotem a vontade de azul… se sou a árvore, procuro oferecer o ramo mais seguro, o ponto onde a vista é mais bonita, onde se pode fazer um ninho; sou madeira generosa. vem, ocupa este braço que te dou, constrói aqui a tua casa. se sou o ninho, quero aconchegar as asas fatigadas do voo, quero ser a cama aberta que se consagra à missão plena do descanso; sou as mãos côncavas de uma criança. quando chegares, só tens de te deixar levar no embalo do teu próprio cansaço. quantos céus voaste hoje? se sou gaiola… não sou digna de ter um pássaro dentro de mim. não posso prender o movimento poético de umas asas. não posso.
BlueBird, quero que voes sempre tomando-me como teu infinito, que te apoies no ramo que te dá a vista mais privilegiada e que te renoves sempre do cansaço do voo no ninho que te fiz. BlueBird, fica, sem sentires as grades de uma gaiola. onde estás?

sexta-feira, 18 de maio de 2012

cinzas


fumo um cigarro. uso como cinzeiro um copo com água. vejo as cinzas a caírem leve e docemente, não como imagem de um resíduo, mas como a poesia da neve ou das folhas de outono, que acariciam o seu último destino com o toque suave da queda. olho para as cinzas e penso na minha janela de infância, esse ecrã gigante que me contava histórias ainda antes do cinema ou dos livros. ali vai o gato que saltava os muros para apanhar os camaleões… olha, e ali está o meu vizinho, a regar as plantas da varanda; acolá o menino da bicicleta vermelha que fazia corridas consigo mesmo e, ao fundo da rua, o cão de olhar triste que guardava o portão da sumptuosa morada da dona Isabel. cada uma destas memórias são still images reveladas pelo olho fabulista da minha janela, que recordo através das cinzas dançantes na água. neva. é inverno na minha janela. caem folhas amarelas e alaranjadas. é outono. amanhã é primavera, e depois é verão. continuo a fumar e a deitar as cinzas para o copo com água. é bom sentir as memórias sazonais da infância. nunca nevou na minha janela, mas eu gosto de pensar que sim. e penso que sim, porque o copo evoca essa falsa memória.
 não mais o cinzeiro terá utilidade. há magia nesta simples alteração.


quinta-feira, 17 de maio de 2012

vestido

ainda o tenho vestido. já saí do sonho e ele permanece no meu corpo. não me apetece despi-lo. o tecido não pertence a este mundo, e se o deixo ficar sobre a pele, torno-me imune à tangibilidade do espaço. nada me toca, nada é tocado por mim. o tempo não tem medida, é um lápis que partiu a ponta e não tem afia. parou. nada mais se escreve. estou à espera que o sonho me chame novamente à sua continuidade, esse lugar onde se escreve, com esferográfica, uma composição de tema livre. o tempo que parou aqui, esse lápis com a ponta partida e sem afia, pesa-me sobre as costas. preciso de descansar um pouco. vou baixar a cabeça. ainda o tenho vestido.

Sommarlek, Bergman



segunda-feira, 14 de maio de 2012

in-visível

sou invisível. sinto-me ruborizar, mas sou invisível. o movimento lógico das teclas denunciam os dedos apressados que digitam a emoção. sou invisível. há uma camisa azul envergada por um corpo. o corpo não é meu, o cheiro não me pertence. sou invisível. a janela está aberta, para que o quarto receba o último suspiro do dia. que pele almeja essa brisa? sou invisível. há um rádio ligado; a música amplia o espaço. quem precisa desse espaço? sou invisível. um livro aberto denuncia a página preferida, marcada e sublinhada. de quem é este livro? sou invisível. sinto-me ruborizar, mas sou invisível. ninguém vê. ninguém pode ver o quanto estou feliz, porque sou invisível.

tenho comigo a palavra que me dá a invisibilidade. está entre os meus pertences.
está em toda a parte.
 é bela, é pura, é alma.


terça-feira, 8 de maio de 2012

vestígios


no silêncio está a respiração do que não acontece. o nada revestido de uma pele qualquer. pode ser a minha. aqui e ali vêem-se peças de roupa espalhadas que, pela disposição selvagem, pedem para serem pintadas ou fotografadas. os vestígios não fazem barulho, ficam assim, amuados, como crianças de castigo, filhos de um momento. ainda quentes, esses vestígios vivem da respiração do que não acontece porque já aconteceu. o que aconteceu ficou seco como a borra de café no fundo da chávena. não se lava a chávena. não.

o silêncio habita. ele chega, senta-se e pinta o quadro.
aquilo que já aconteceu mas ainda respira.

Toulouse-Lautrec


segunda-feira, 7 de maio de 2012

c'est tout.

[Venez m'aimer.
 Venez.
 Viens dans ce papier blanc.
 Avec moi.

 Je te donne ma peau.
 Viens.
 Vite.]

[Regarde-moi.]

[Venez dans la salle blanche. Venez m'enlever une robe de soie.
 Je n'ai plus rien à porter.]

[Silence, et puis.]

Marguerite Duras, C'est Tout





domingo, 6 de maio de 2012

memórias da estranheza

Mãe, para onde vão as nuvens quando não as vemos?


Frederick Leighton, Mother and Child

quinta-feira, 3 de maio de 2012

c


há um coração que bate depressa, depressa. não é futurista, não é máquina. não. é expressionista. bate depressa porque é a sua forma de expressão. se bate a meio gás, é para garantir a vida, se bate depressa é porque a vive e diz que vive.
há um coração que vive, não só garante a vida como vive. está guardado no peito e comunica com o ouvido que se encosta. acelera, acelera… ele vive. eu vivo. há generosidade entre nós.
(que bom sentir-te, coração.)