sábado, 21 de abril de 2012

luz


escrevo sobre a leveza dos passos daqueles pés sobre os quais vai um corpo pesado pela alma. um corpo que não diz, mas ao caminhar se revela aos olhos de quem o ama. esconde na carne os medos, as inquietações. reprime o grito do desejo: grita o desejo como um ator de cinema mudo. falta-lhe a sincronização entre a pele e o invisível que ela encobre. a eletricidade entre os dois sofre a interferência do medo. há um apagão na cidade do amor.
vou chamar o eletricista e pedir-lhe para matar o medo e acender a luz àquele desejo. ele chama por mim, eu respondo. o corpo é um canal. deixo de ser corpo quando estou iluminada por ele. sou feita da matéria do grito.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

na cidade


nas aldeias vive-se a falar da vida dos outros. nas grandes cidades vive-se da página aberta do livro da pessoa sentada ao nosso lado no metro. nas aldeias sofre-se a morte de um vizinho a quem não se dizia mais do que um "bom dia". nas grandes cidades só se sabe da existência deste se ele se colocar à janela a garantir o olhar sobre mais um dia. nas aldeias grita-se para uma comunicação direta. nas grandes cidades faz-se uma chamada do outro lado da rua. nas aldeias dá-se comida aos cães. nas grandes cidades abandonam-se na rua. nas aldeias fazem-se bolos para a tia-avó. nas grandes cidades não se conhece a tia-avó. nas aldeias come-se pão. nas grandes cidades diz-se que o pão engorda. nas aldeias regam-se as plantas. nas grandes cidades ornamentam-se as casas com flores de plástico. nas aldeias deitam-se cedo. nas grandes cidades a noite é maior que o dia: dormir é para quem não gosta do escuro.
a rua está deserta, mas há vida atrás das paredes.
sou da cidade.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

aquela palavra


não digo aquela palavra. juro que não digo. deixo-a sempre abrigada no desejo de a pronunciar. fica ali. não apanha frio nem chuva. está somente ali, em potência, à flor da boca. mas fica. permanece abrigada no desejo de a pronunciar. sabe que essa é a melhor sensação de todas: o não dizer agora para dizer mais tarde, com mais força. o desejo que a mantém cativa, mas que também a provoca, é o toldo da sensatez. é um querer que sabe que não pode e obedece. obedece porque se guarda para melhor. não é uma obediência cega, é a espera pelo clímax do nosso filme.
hoje quis dizer-te. mas era insensato. era rebelde. era desobedecer ao desejo (esse desejo peculiar).

quarta-feira, 4 de abril de 2012

estante


converso com a minha estante. peço-lhe que me conte todas as histórias, de todos os livros que se perfilam como soldados em formatura. não gosto do perfil militar da minha estante. já lhe disse. olho-a com muita intensidade, a uma distância média, como se à força do meu olhar o caos se abatesse sobre ela e a formatura desaparecesse. soldados estúpidos. ali se mantêm inertes, ilesos, irritantemente ilesos. nem um arranhão. é urgente levantar-me. é urgente levantar-me e desarrumar a estante, descolar os livros uns dos outros e deixá-los respirar as suas histórias para mim.
tanto pó que elas tinham...

terça-feira, 3 de abril de 2012

teclado(s)


«Uma parte do trabalho era inconsciente, pensava, crescia de noite dentro dela. De repente conseguia sem esforço o que antes lhe parecera impossível. O momento em que, como se tivesse ganho balanço oscilando para cá e para lá sobre uma corda tensa, se lançava sem rede. Como fizera (tinha a certeza) o autor da partitura. Ela refazia o seu voo. Experimentando a mesma sensação embriagante de soltar-se.
Não era o olhar do público que segurava a trapezista, há muito que sabia. Agora sorria ao lembrar-se de que pensava isso, com terror, anos atrás. Tudo se passava unicamente entre a mulher e a corda do baloiço onde oscilava. A vida e a morte dependiam do acordo entre ambos: da harmonia entre o corpo e a corda.
Também entre ela e o teclado (as cordas percutidas do teclado) havia no fundo a mesma ligação. Ela sabia. (...)»
Os teclados, Teolinda Gersão
(pintura: Renoir)