quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Strange Impersonation

Há muito tempo que não ia a uma matinée na Cinemateca. Não me peçam para explicar o que é muito tempo. O meu calendário emocional diz-me que passou uma grande temporada e eu só posso confirmar. Hoje lá cheguei, sozinha, levantei o bilhete e sentei-me a ler antes da sessão. Ali perto estavam as mesmas cabeças grisalhas de sempre e outros desconhecidos navegantes, que também aguardavam serenamente o culto, uns a ler o jornal e outros a dormitar. Pensei cá para mim, as saudades que eu tinha disto. Atravessou-me uma deliciosa sensação de estar contracorrente. Imaginei todas as pessoas que naquela altura, em início de tarde, estavam fechadas num escritório entre papelada e barulho. Senti-me de repente mais nova, no coração daquele outro tempo em que passava dias inteiros na Cinemateca, com comida dentro da mala e uns livros para acompanhar o café entre as sessões… Não sei dizer o quanto fui feliz neste desrespeito pelo horário laboral dos outros, e não quero maçar ninguém com sentimentalismos. Mas curioso é que, no filme, um noir  Strange Impersonation, de Anthony Mann  a protagonista toma outra identidade. Sem forçar o paralelismo: também eu saí da minha pele por umas horas, e foi reconfortante. 

Strange Impersonation (1946), Anthony Mann





segunda-feira, 31 de julho de 2017

Jeanne Moreau (1928-2017)

Ninguém deambulava como ela, de rosto perdido em avenidas interiores.


Ninguém como ela...


Ninguém como ela...


Actriz de pele. Que outros banhos senão os dela mereceram tanta admiração dos realizadores pela sensualidade imanente?


 Ninguém cantou como ela o turbilhão da vida e a morte do amor.



Ninguém como ela…




domingo, 16 de abril de 2017

Je me souviens

Lembro-me das tardes sem horas, quando no ar se sentia o aroma a princípio. Primavera. Ressurreição. E lembro-me de, em vez de flores, colher ervas para colocar dentro de uma jarra. Queria dar-lhes um contexto aristocrático (assim considerava o meu quarto), mesmo que andasse enredada em pensamentos contra quaisquer manifestações de nobreza. Queria permitir que essas ervas passassem de bolcheviques do quintal a czares de uma secretária cheia de livros com lombada velha: ideia contraditória com as publicações do meu pai que a ornamentavam. Entre calhamaços de História e romances clássicos, os panfletos de folha amarelada eram os meus preferidos. Pelo menos nessa Páscoa. Democracia burguesa e ditadura do proletariado, de Lenine, ou Catecismo do Trabalhador, de Paul Lafargue. Divertia-me a ler coisas que não tinha idade para compreender, mas que sabia dizerem algo sobre os interesses daquele a quem tinham pertencido. Lembro-me de não dar pelas horas que passava entre o “capital” de que se falava nesses livrinhos e fatias de folar. Acima de tudo, lembro-me do cheiro a princípio que andava no ar, e do outro a antigo que emanava das folhas. E lembro-me das ervas que, na jarra, me pareciam mais belas do que as flores. Ali, descontextualizadas. Por essa altura também, já apreciava a feliz anarquia de Michel Simon. O cinema que a observava.
Isto tudo assim, de uma vez. Eterna Primavera.



Le vieil homme et l'enfant (1967), Claude Berri

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Paris... Texas

Paris, Texas (1984), Wim Wenders

Sempre me fascinou esta coisa dos vidros e janelas. O jogo do olhar e da imaginação. Um deixar ver que também esconde, um definir de papéis, quem observa e quem é observado. Quando ando pela rua, tenho uma tendência incauta para olhar as janelas dos prédios. Às vezes vislumbro gatos no parapeito, faço uns estalidos com a boca para chamar os bichanos, mas eles ficam com o mesmo ar impassível no seu altivo descanso. Outras vejo apenas um candeeiro ou quadros na parede, sem vivalma numa ampla sala que se adivinha no ângulo de visão, e outras ainda a senhora da limpeza que corre o vidro pelo caixilho, para sacudir um tapete ou o espanador. Isto acontece de manhã, quando o dia ainda não deixou cicatrizes. Ao fim da tarde, gosto (e já o escrevi aqui) de observar as primeiras luzes que se acendem no interior dos apartamentos. Uma luminosidade baixa, que sara as feridas de cada dia. Ponho-me a imaginar as histórias possíveis, no reflexo dessas janelas (até penso se os vidros são duplos, porque está frio e zelo pelo conforto dos desconhecidos). Imagino cada um destes rectângulos envidraçados como grandes telas. O cinema.
Hoje revi o Paris, Texas. Mais uma vez senti a síndrome do vidro. Aquela cena da cabine, em que ele pode vê-la, jovem e bela, mas ela ignora o rosto por detrás da vidraça (e da voz). Ele conta-lhe uma história, e ela converte-se num reflexo das palavras. Mais tarde, ele observa a janela para a qual escreveu a conclusão dessa história, um reencontro. Tão bonito.
O número do quarto é o 1520. Meridian hotel.