A Academia das Musas (2015) |
Coeur fidèle (1923) |
(Inês Lourenço) Pareceu-me encontrar
neste A Academia das Musas uma ordem inversa ao Dans la ville de
Sylvia (2007), ou seja, nesse filme as
musas são passivas, ignoram o atributo que se lhes dá, e aqui, em A
Academia…, a palavra é o grande poder das
musas, e confere um movimento cinematográfico que já não é pedido à câmara – quase
sempre fixa. Compreende o discurso, a palavra, como uma forma de movimento?
(José Luis Guerín) É exactamente assim.
Vamos ver o que posso acrescentar… Diria que a relação entre os dois filmes é
algo inconsciente, ou seja, algo que não organizei conscientemente. Mas é
verdade que em Dans la ville de Sylvia
não existe a noção de personagem, nem de mulheres nem de homens. Há alguém que observa,
como uma espécie de sonhador, e que está à procura de uma imagem. Mas esse
alguém que observa nem sequer tem um nome, não sabemos a sua profissão, não
sabemos nada sobre ele – são relações que se estabelecem entre presenças,
através de olhares. Por outro lado, em A
Academia das Musas, temos personagens verdadeiras, de carne e osso, e,
apesar do que diz o título, não há nenhuma musa, são todas mulheres muito
reais. Além disso, ao passo que A Cidade
de Sylvia é um filme essencialmente visual e sonoro, desprovido de
palavras, neste as palavras têm protagonismo. Assim, o movimento que interessa
em A Academia das Musas é o do
pensamento, das emoções. E eu sempre achei que o movimento mais cinematográfico
que há é aquele em que consegues transmitir ao espectador o que pensa a
personagem que filmas. Isso é um movimento privilegiado, e para captá-lo tento
imobilizar a câmara, porque, sendo um movimento interior, se moves os dois – a
câmara e o outro – obstruem-se entre si.
A certa altura do
filme, diz-se que “ensinar é seduzir”. O cinema é também um ato de sedução?
Depende de como
entendemos esse aspeto, porque a mim incomoda-me muito quando me querem seduzir
num filme através de enormes artifícios, isso põe-me na defensiva. Todos queremos,
antes de mais, ser tratados como pessoas inteligentes, e há filmes que subtraem
enfaticamente as coisas… Trata-se essencialmente de estabelecer uma relação com
o espectador, não necessariamente de sedução.
Isso também se sente
nas aulas. O professor tem essa intenção sedutora, mas elas encontram formas de
o refutar, de combater o encantamento. E é curioso que o sentido do confronto,
ao longo de todo o filme, se percebe muito através dos planos que posicionam os
rostos na condição ora conflituosa ora intimista.
Também foi por uma
questão económica que decidi centrar-me nos rostos. Este foi um filme que fiz
quase sem nada, apenas com a ajuda da minha operadora de som, e por isso,
agrada-me muito controlar tudo o que se vê na imagem. Não há aqui luz
artificial, nem direção artística, nem sequer tinha direito a mover os objectos
nos espaços onde filmava. Então, o que é que eu podia controlar? Apenas a
pequena superfície dos rostos das minhas personagens.
E os rostos surgem
muitas vezes através de vidros, como se, ao mesmo tempo, estivessem protegidos dentro
de uma bolha, e essa camada vítrea os tornasse mais belos, mais próximos da
ideia de cinema, ou seja, algo que se interpõe entre a realidade e o
espectador. Esta opção formal tem também algum sentido de economia de rodagem?
Sim, as imagens com
reflexos são um pouco como o cinema, porque vês coisas que não estão ali, vês
imagens ilusórias. O motivo que me levou a filmar atrás dos vidros, a
princípio, era mais por estes serem uma chave observacional, documental. E uma
vez que precisava de passar do espaço público que é a sala de aula para o
espaço privado, sem romper a lógica observacional, pareceu-me que não tinha
direito a entrar no interior, que devia permanecer de fora. Isso facilitava
também o trabalho dos atores, que, embora sejam muito bons, não são
profissionais. Então, o facto de eu não invadir os seus espaços tranquilizava-os.
Depois, na montagem – porque é um filme que foi feito alternando fases de
rodagem e montagem – pareceu-me muito interessante a ideia de espaço que dava
nos seus reflexos. Vejamos, sendo um filme sem planos descritivos dos espaços e
tão concentrado em primeiros planos, a única referência ao que está à volta é
dada pelos seus reflexos. Às vezes não são mais do que manchas de cores
desfocadas, mas a partir dessas manchas podes convocar um imaginário e o
movimento de uma cidade, o urbanismo, a arquitectura, uma paisagem, afinal. Gosto
muito da ideia, é como se entrassem na mesma imagem a figura e a paisagem, de
uma maneira muito sintética, invocando o imaginário do espectador para criar
essa imagem.
Lembrei-me muito de
alguns planos do Coeur fidèle (1923), de Jean Epstein, com a paisagem a fundir-se no rosto da
mulher…
Pois deixa-me dizer-te que Jean Epstein é um criador muito
importante para mim.
A Academia das Musas,
sendo uma “experiência pedagógica”, como é anunciado no filme, começou como um
projeto puramente académico ou foi, desde logo, qualquer coisa de raiz
cinematográfica?
O filme não partiu de nenhuma ideia preconcebida. Eu tive o
convite do professor e suas alunas a experimentar cinematograficamente estas
aulas. E fui com a minha pequena equipa, mas sem a noção de que daí iria
resultar um filme, bastava-me que fosse uma experiência de pôr a palavra em
cena. Mas, pouco a pouco, na alternância entre dias de filmagem e de montagem,
fui descobrindo o gosto por algumas personagens que vão evoluindo, e pensando
que afinal podia dar lugar a uma curta-metragem ou a uma vídeo-instalação,
diferentes coisas… quer dizer, o filme foi tomando consciência de si mesmo à
medida que se ia filmando, daí que não tenha sido possível pedir nenhum
subsídio às instituições, porque não queria comprometer-me com nada.
De algum modo, isso
também lhe deu mais liberdade artística.
Claro. Até na realidade linguística que o filme mostra, em
que se fala italiano, espanhol, sardo, catalão… isto é responder à lógica
orgânica das personagens. É um filme muito latino, quiçá mediterrânico.
Como é que dirigiu
estas atrizes?
O meu trabalho foi
muito discreto, foi um incentivar das situações, dar umas pautas, criar a
atmosfera e a situação para que fluíssem da melhor maneira possível as suas
interpretações. Mas nunca disse o que elas tinham exactamente que fazer ou
dizer, porque passa mais pela lógica de criar um pedaço de vida em frente à
câmara.
Sendo toda a sua obra
muito marcada pelo documentário, que acaba por contaminar também esta ficção,
quais são, para si, as fronteiras que separam as duas coisas?
Em última instância, para mim, a diferença mais valiosa está
na verdade dos corpos. Se vamos contar a tua história, tu podes interpretar-te
a ti mesma, e mais ninguém te substitui, seja ou não atriz. Eu tento que A Academia das Musas não seja mostrada
em festivais de cinema documental ou não-ficção, porque as personagens que
criámos são imaginárias. É verdade que o professor na vida real é professor, a
sua mulher é sua mulher, e as suas alunas são suas alunas, mas a partir daí
acaba-se o paralelismo com a realidade. Digamos que é uma ficção que eu nunca
poderia ter feito sem experiência prévia no documentário, e o que teve em comum
com este é que eu não sabia onde me ia levar. É diferente da ficção sujeita a
um guião preciso. No caso, tinha somente a ver com a interação com os atores.
A raiz da ficção também
acaba por estar no contexto destas aulas, em que se fala de literatura e
poesia.
Exacto. No momento em que percebi que isto era um filme, vi
que só podia passar pela fabulação, é justamente disso que se fala. Nas
primeiras cenas, passadas na sala de aula, anunciam-se os temas que vamos ver
depois: o amor adúltero dos trovadores, a musa que lê frente à musa que escreve…
E há uma mutação progressiva, portanto, outra coisa que me agrada muito é
conservar distintas formas de movimento, por isso o filme surge como um
documentário e evolui para uma comédia de guerra de sexos, e em seguida quase
um melodrama… assim, do mesmo modo, o espectador vai mudando o seu pacto com o
filme, à medida que o vê.