quarta-feira, 4 de setembro de 2019

O cinema, esse santo milagreiro

Limelight (Luzes da Ribalta, 1952), Charles Chaplin
Dolor y gloria (Dor e Glória, 2019), Pedro Almodóvar



Terry: What is there to fight for?
Calvero: Ah, you see, you admit it. What is there to fight for? Everything. Life itself, isn't that enough, to be lived, suffered, enjoyed. What is there to fight for? Life is a beautiful, magnificent thing, even to a jellyfish. Besides, you have your art, your dancing.
Terry: I can't dance without legs.
Calvero: I know a man without arms who can play a scherzo on a violin and does it all with his toes. The trouble is you won't fight. You've given in, continually dwelling on sickness and death. But there's something just as inevitable as death, and that's life. Life, life, life. Think of all the power that's in the universe, moving the earth, growing the trees. That's the same power within you if you only have courage and the will to use it.

Nestas palavras galvanizadas de Calvero/Chaplin em Limelight (um filme que apetece citar por inteiro) está a mais bonita das lições de auto-ajuda concebidas no grande ecrã. Terry/Claire Bloom não se ergue da cama porque a sua mente lhe prende o movimento das pernas. Ela é a bailarina que não consegue dançar, tolhida pela sua fragilizada psique, e ele o Jesus Cristo que diz “Levanta-te e anda!”, operando o milagre através do cinema, essa fonte de meta-coragem do cineasta e comediante desencantado, vagabundo por vocação. Sobre esta última – a vocação – Almodóvar (que aparentemente nada tem que ver com Chaplin) escreveu em Pathy Diphusa e Outros Textos: “Nasces um dia e olhas à tua roda com esse olhar pérfido e rancoroso próprio de um ser inocente e sem experiência. Descobres que não queres ser engenheiro, nem médico, nem advogado. Nem sequer te sentes atraído por trabalhar na Caixa Postal da povoação. Também não te enlouquece a ideia de ser agricultor. Descobres, não sem dor, que és diferente.” Como uma bailarina, um comediante, um cineasta.
Do ponto de vista autobiográfico, o novo filme de Almodóvar, Dor e Glória, observa essa singularidade que a vocação lhe deu, e o modo como definiu a sua vida. Mas mais do que ela – a vocação – o filme explora a anatomia emocional de uma estagnação. Um cineasta, Salvador Mallo/Antonio Banderas/Pedro Almodóvar, que deixou de fazer filmes, paralisado pelas dores que lhe tomaram conta do corpo e da alma. Tal como Terry, a bailarina que não dança por trauma psicológico, Mallo é o cineasta que precisa de se reconciliar com o passado para voltar ao ofício da câmara. E o cinema é essa entidade que diz “Levanta-te e anda!”, qual santo milagreiro dos ímpios espirituais.



*Pathy Diphusa e Outros Textos, 1991, Círculo de Leitores, trad. Pedro Tamen

segunda-feira, 4 de março de 2019

"O Musil e a Agustina? Obviamente estão a falar de nós"


A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes


É a partir da prosa daquele que escreveu O Homem sem Qualidades que nasce um filme generoso em atributos. O austríaco Robert Musil encantou-se com o retrato de uma mulher lusa, pintado por Ticiano, e Rita Azevedo Gomes põe-nos a olhar para o mistério dessa mulher com a ajuda das palavras de Agustina Bessa-Luís. A Portuguesa não transporta apenas para a tela do cinema a história – passada no norte de Itália, no século XVI – da tal dama estrangeira e do seu marido que anda na guerra, o nobre germânico Von Ketten, mas capta a poesia da espera em imagens vibrantes que nos interpelam a retina e o espírito.
Por falar em espírito, talvez seja mesmo isso que também define aqui a presença da atriz e cantora veterana Ingrid Caven (musa de Fassbinder), que cruza o filme como uma figura anacrónica, ao mesmo tempo, orgânica e disruptiva, estranha e estética. Ela é o “borrão” depois do quadro pintado, e a voz que canta amparada pela música de José Mário Branco. A realizadora, Rita Azevedo Gomes, falou-nos de todos estes contributos, da passagem por Berlim e do seu desejo de nadar contra a corrente.

Que sensações trouxe da receção do filme no Festival Berlim?

São sensações mistas. Foi tudo tão rápido, voraz, alucinatório, no sentido em que havia dificuldade em encontrar amigos, muita gente a querer falar comigo, e por isso passei os dias em entrevistas e conversas… Não vi filmes. Berlim pareceu-me um festival muito feroz, num certo sentido, brutal. Por isso senti-me um bocadinho perdida, não tive bem a noção do que estava a acontecer. Só quando voltei, já à distância, é que me apercebi de que tinha havido um muito bom acolhimento ao filme. Portanto, nessa altura fiquei um bocado com a sensação de que ainda não tinha ido…

Regressando ao início de tudo, como é que acontece o seu encontro com o livro de Musil, que está na base d’A Portuguesa, e depois a adaptação da Agustina?

O meu encontro com o livro [Três Mulheres] foi uma coisa perfeitamente esporádica. Comprei-o num alfarrabista no Porto porque engracei com a capa. Achei-a bonita, pronto. Já não sei bem se foi nos 90 anos do Manoel de Oliveira ou no centenário do cinema português, mas foi uma ocasião em que percorri os muito bons alfarrabistas do Porto, quando ainda existiam. Portanto, comprei o livro, que ficou lá em casa durante anos sem ser lido. E depois d’A Conquista de Faro [2005], filme para o qual a Agustina me escreveu um argumento, ficámos com uma relação mais próxima, de vez em quando falávamos, encontrávamo-nos… Um dia, no grémio literário, estávamos a almoçar e veio à baila o Musil. Ela falou-me de um conto que achava engraçado, que se chamava A Portuguesa. De repente lembrei-me que tinha o livro, fui à procura dele e li-o… Um livro extraordinário. São três contos fabulosos – só escolhi A Portuguesa por causa do nome, qualquer um dos outros era igualmente apelativo. Como a Agustina gostava muito deste conto, propus-lhe que escrevesse uma adaptação cinematográfica. Ela disse “está bem” e assim foi. Claro que tive de tratar dos direitos literários, o que se revelou uma batalha com o editor alemão porque me pediam fortunas, mas ao fim de muitas cartas e telefonemas consegui um preço acessível. Então a Agustina entregou-me, passado tempos, um guião com oito páginas.

Os diálogos?

Basicamente diálogos. E eu li aquilo e fiquei um bocado perplexa… Porque a pretexto da história do Musil ela acrescenta também uma coisa muito enigmática, uma outra camada. O texto do Musil já tem imensos aspetos que eu gosto, que é o que não está dito, o que não está explicado, o que nos faz fazer perguntas. Ele escreve de uma maneira que faz surgir no contexto da página uma frase sem antes nem depois, que não está ali a fazer nada.

O filme também beneficia desse enigma, daquilo que não é dito…

Pois… acho que a maneira de escrever, tanto do Musil como da Agustina, dá-nos pedaços de vida. Não há o “Era uma vez”...

Não é previsível.

Não é previsível, exatamente. Gosto dessa espécie de fio que não é linear, que não é ascendente e descendente, que não faz o movimento inteiro… isso foi sugestivo. E há muitas coisas no filme que a Agustina deixou para trás, ao adaptar o conto do Musil, que eu depois fui recuperar porque na altura em que o li foram importantes para mim.

Então há ainda uma terceira camada…

O que me competia a mim era – tendo de um lado a Agustina e do outro o Musil – trabalhar as imagens. Através delas dizer alguma coisa que não está dita nos textos.

Olhando para a sua obra, há muito essa especificidade do texto literário – em A Colecção Invisível [2009], Stefan Zweig, em A Vingança de Uma Mulher [2012], Barbey d'Aurevilly, em Correspondências [2016], os poetas Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena… É apenas coincidência ou há um gosto pela palavra enquanto matéria de cinema?

Não penso muito nisso. Acontece, como tudo na vida. Às vezes, perante um texto – como foi o caso deste – acontece-me trazer logo as coisas para o presente, parece-me que o autor está a falar de nós, e fala tão bem que eu perco logo as pretensões de escrever diálogos. Não sei fazer isso. Às vezes vejo filmes que visualmente até podem ter qualquer coisa, mas depois são tão planos, tão banais de palavra… Eu pego nas coisas que me apetece dar ao mundo para ouvir! Isso aconteceu-me muito com a Sophia e com o Sena. E o Musil e a Agustina? Obviamente estão a falar de nós. A história passa-se no século XVI, mas conflitos religiosos, conflitos de poder, conflitos de masculino e feminino… está tudo por cá.

Por falar em masculino/feminino, o que é que lhe interessa nesta personagem feminina da dama portuguesa?

Esta pessoa é interessante porque não se percebe, não se sabe o que é que lhe vai na cabeça, o que é que está no seu íntimo. Depois o que eu aprecio é isto: fora com a psicologia! Hoje em dia precisa-se muito de dizer “ah, a força da mulher”, não sei o que é isso! Por exemplo, voltando a Berlim, disseram-me que havia lá uma grande percentagem de filmes de mulheres, e eu, que não me tinha dado conta, só perguntei: “e os filmes são bons?” Esta coisa da equidade parece-me completamente disparatada, porque não é assim que as coisas vão mudar. As coisas mudam quando mudarem os salários, quando mudarem as coisas da base.

Como se os filmes já não valessem por si…

Veja-se agora os Óscares, os filmes que ganham o que é que têm? São os temas. É a imagem que a América quer dar… Eu acho que o cinema vai muito mais além do politicamente correto.

Neste sentido, A Portuguesa vem em contracorrente, nega-se ao filme-tema.

Eu gosto de nadar contra a corrente. Já uma vez ia morrendo afogada por, literalmente, nadar contra a corrente! (risos) Mas nem se trata tanto de gostar, é uma necessidade, porque na verdade sofro com isso... Embora esteja a haver uma generosa receção a este filme, mesmo cá sinto que há uma resistência.

Talvez porque os olhos não estão habituados a filmes em que cada plano é uma composição rigorosa?

Tenho um enorme respeito pelo plano. Penso muito em como compor uma imagem. Sou muito chata com tudo o que mexe, tudo o que está dentro do plano – a luz, as pessoas… –, claro, dentro dos meios que temos. Porque, no fundo, estamos a fazer um quadro.

É o bichinho de alguém que passou pelas Belas Artes?

Não sei se é. Fui uma péssima aluna de Belas Artes… (risos) Não tinha paciência para pintar, porque sozinha diante de uma tela sufoco! Daí talvez o cinema… Eu fui para Belas Artes mas não era feliz à frente da tela, preciso de pessoas, preciso de estar em comunicação. Portanto, pintura para mim era uma catástrofe. Mas sim, há qualquer coisa de “como se estivesse a fazer um quadro”, só que a matéria não é óleo, nem guaches, nem lápis ou aguarelas – é luz. Gosto muito desta ideia, porque é tal e qual.

Falou aí das pessoas, do coletivo. É um aspeto fundamental para si no trabalho artístico?

É. Mesmo com aquelas tensões todas que se sabe que são inerentes às rodagens. Não imagina o gozo que me dá sentir que as pessoas estão ali por algo que se está a tentar fazer. Dou um exemplo: um dia estava desesperada porque tinha escolhido um sítio extraordinário onde havia grifos a voar sobre as cabeças, e no dia em que lá vamos… nada. E eu queria, à força, os grifos! (risos) De repente, o maquinista viu-me tão angustiada que começou aos urros, a bater com umas coisas, e desatou tudo a voar! Momentos como este são muito bons.

Nesse trabalho de equipa, destaca-se a colaboração regular do veterano diretor de fotografia Acácio de Almeida…

O Acácio… eu acho que cada vez estamos melhores! (risos) A gente já não precisa de falar muito. Entendemo-nos, e penso que é uma coisa mesmo recíproca.

Em relação à protagonista, a Clara Riedenstein [John From], parece uma escolha muito coerente com o filme em si: não é uma atriz da moda, não vem das telenovelas e conserva uma certa pureza performativa… De novo um aspeto contracorrente?

Absolutamente. Aí está o ponto. Não é uma atriz cheia de clichés e tiques. A verdade é que pensei em muita gente, mas nada me satisfazia – mesmo atrizes que são boas atrizes, não eram para isto. Eu não queria uma pessoa que sabe, queria alguém que não sabe, assim como eu, numa de “vamos ver como se faz”. Ou seja, não queria uma atriz fabricada, mas alguém que o é naturalmente. E para isso é preciso uma certa inteligência, que acho que a Clara tem; uma maneira de entender, de colocar algo numa frase, uma coisa muito pessoal… Para mim isso é o talento. E este foi um encontro extraordinário, porque o filme depende muito dela. Eu andava desesperadamente à procura de uma ruiva e não me apetecia nada andar a pintar cabelos…


Clara Riedenstein no filme


Porquê que tinha que ser ruiva?

Tem que ver com esta história, que ainda vem da Agustina: ambas perguntávamo-nos porque é que o Musil escreve um conto que se chama “A Portuguesa”. E há nas memórias de viagem do autor a descrição de um quadro com uma mulher, que ele viu no Museu do Prado, que o impressionou muito. É um quadro do Ticiano, e ela é a Isabel de Portugal – uma mulher extraordinária, como depois fui averiguar… Ora a Isabel de Portugal é ruiva. E até isto é importante para ir contra o estereótipo da mulher morena, de cabelo castanho, olhos amendoados e ar melancólico… não obrigada. Quis combater a banalização.

Outra coisa que não é nada banal no filme é a presença de Ingrid Caven – também ruiva – que se presta a diversas interpretações. Deduzo que não fosse uma personagem escrita.

Não está no Musil nem na Agustina, ou seja, é a minha parte: só existe no filme. Não me chegava estar a fazer um filme de época, bonitinho, com vestidos lindos, precisava de fazer um rasgão naquilo tudo. E tinha um desejo de trabalhar com ela que já vem de trás – era para ter entrado no Correspondências. Então vi esta figura, que no fundo é a Ingrid Caven a ser ela própria, que atravessa o filme como uma nota fora da composição, e que vem cantar poemas que têm que ver com o que se está ali a passar… Claro que explicar-lhe qual era o seu papel não foi fácil, porque não era um papel. Mas a certa altura surgiu a comparação com o anjo do texto do Walter Benjamin sobre um quadro do Paul Klee. Enfim, depois disso já ouvi muitas interpretações, mas para mim é só a Ingrid Caven que entrou no filme.

Ela própria carrega uma mitologia…

Sim, exato. Ela no cinema é um bocadinho isso, há uma irreverência na maneira como canta.


Ingrid Caven no filme

Faz lembrar um pouco a Marlene Dietrich, que tinha uma languidez única…

Precisamente. E a Ingrid Caven... eu e ela temos muitas coisas em comum. Estou a falar da vidinha mesmo: sabemos o que é estar do lado do underground, do marginal, dos conflitos, lá está, contra a corrente. Portanto, ela é a personagem que puxa o filme para o presente, até através do guarda-roupa. E as composições do José Mário Branco são o remate… Outra pessoa que tem uma inteligência brilhante para perceber o que é que se pretende, é muito fino a pegar nas coisas.

É com este tipo de contributos que o filme se descola da ideia de perfeição?

Isto é como o Ticiano, que depois de pintar ia lá e esborratava com os dedos. Eu preciso de estragar um bocadinho para depois ver.


(entrevista originalmente publicada no Diário de Notícias, numa versão mais curta)

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

La première nuit


...Tout ce qu'on peut savoir, c'est qu'il rêve.
Tout le monde rêve.


Jacques Prévert


La première nuit (1958), Georges Franju

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Strange Impersonation

Há muito tempo que não ia a uma matinée na Cinemateca. Não me peçam para explicar o que é muito tempo. O meu calendário emocional diz-me que passou uma grande temporada e eu só posso confirmar. Hoje lá cheguei, sozinha, levantei o bilhete e sentei-me a ler antes da sessão. Ali perto estavam as mesmas cabeças grisalhas de sempre e outros desconhecidos navegantes, que também aguardavam serenamente o culto, uns a ler o jornal e outros a dormitar. Pensei cá para mim, as saudades que eu tinha disto. Atravessou-me uma deliciosa sensação de estar contracorrente. Imaginei todas as pessoas que naquela altura, em início de tarde, estavam fechadas num escritório entre papelada e barulho. Senti-me de repente mais nova, no coração daquele outro tempo em que passava dias inteiros na Cinemateca, com comida dentro da mala e uns livros para acompanhar o café entre as sessões… Não sei dizer o quanto fui feliz neste desrespeito pelo horário laboral dos outros, e não quero maçar ninguém com sentimentalismos. Mas curioso é que, no filme, um noir  Strange Impersonation, de Anthony Mann  a protagonista toma outra identidade. Sem forçar o paralelismo: também eu saí da minha pele por umas horas, e foi reconfortante. 

Strange Impersonation (1946), Anthony Mann





segunda-feira, 31 de julho de 2017

Jeanne Moreau (1928-2017)

Ninguém deambulava como ela, de rosto perdido em avenidas interiores.


Ninguém como ela...


Ninguém como ela...


Actriz de pele. Que outros banhos senão os dela mereceram tanta admiração dos realizadores pela sensualidade imanente?


 Ninguém cantou como ela o turbilhão da vida e a morte do amor.



Ninguém como ela…




domingo, 16 de abril de 2017

Je me souviens

Lembro-me das tardes sem horas, quando no ar se sentia o aroma a princípio. Primavera. Ressurreição. E lembro-me de, em vez de flores, colher ervas para colocar dentro de uma jarra. Queria dar-lhes um contexto aristocrático (assim considerava o meu quarto), mesmo que andasse enredada em pensamentos contra quaisquer manifestações de nobreza. Queria permitir que essas ervas passassem de bolcheviques do quintal a czares de uma secretária cheia de livros com lombada velha: ideia contraditória com as publicações do meu pai que a ornamentavam. Entre calhamaços de História e romances clássicos, os panfletos de folha amarelada eram os meus preferidos. Pelo menos nessa Páscoa. Democracia burguesa e ditadura do proletariado, de Lenine, ou Catecismo do Trabalhador, de Paul Lafargue. Divertia-me a ler coisas que não tinha idade para compreender, mas que sabia dizerem algo sobre os interesses daquele a quem tinham pertencido. Lembro-me de não dar pelas horas que passava entre o “capital” de que se falava nesses livrinhos e fatias de folar. Acima de tudo, lembro-me do cheiro a princípio que andava no ar, e do outro a antigo que emanava das folhas. E lembro-me das ervas que, na jarra, me pareciam mais belas do que as flores. Ali, descontextualizadas. Por essa altura também, já apreciava a feliz anarquia de Michel Simon. O cinema que a observava.
Isto tudo assim, de uma vez. Eterna Primavera.



Le vieil homme et l'enfant (1967), Claude Berri

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Paris... Texas

Paris, Texas (1984), Wim Wenders

Sempre me fascinou esta coisa dos vidros e janelas. O jogo do olhar e da imaginação. Um deixar ver que também esconde, um definir de papéis, quem observa e quem é observado. Quando ando pela rua, tenho uma tendência incauta para olhar as janelas dos prédios. Às vezes vislumbro gatos no parapeito, faço uns estalidos com a boca para chamar os bichanos, mas eles ficam com o mesmo ar impassível no seu altivo descanso. Outras vejo apenas um candeeiro ou quadros na parede, sem vivalma numa ampla sala que se adivinha no ângulo de visão, e outras ainda a senhora da limpeza que corre o vidro pelo caixilho, para sacudir um tapete ou o espanador. Isto acontece de manhã, quando o dia ainda não deixou cicatrizes. Ao fim da tarde, gosto (e já o escrevi aqui) de observar as primeiras luzes que se acendem no interior dos apartamentos. Uma luminosidade baixa, que sara as feridas de cada dia. Ponho-me a imaginar as histórias possíveis, no reflexo dessas janelas (até penso se os vidros são duplos, porque está frio e zelo pelo conforto dos desconhecidos). Imagino cada um destes rectângulos envidraçados como grandes telas. O cinema.
Hoje revi o Paris, Texas. Mais uma vez senti a síndrome do vidro. Aquela cena da cabine, em que ele pode vê-la, jovem e bela, mas ela ignora o rosto por detrás da vidraça (e da voz). Ele conta-lhe uma história, e ela converte-se num reflexo das palavras. Mais tarde, ele observa a janela para a qual escreveu a conclusão dessa história, um reencontro. Tão bonito.
O número do quarto é o 1520. Meridian hotel.