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A Portuguesa, de Rita Azevedo Gomes |
É a partir da prosa daquele
que escreveu O Homem sem Qualidades que
nasce um filme generoso em atributos. O austríaco Robert Musil encantou-se com
o retrato de uma mulher lusa, pintado por Ticiano, e Rita Azevedo Gomes põe-nos
a olhar para o mistério dessa mulher com a ajuda das palavras de Agustina
Bessa-Luís. A Portuguesa não
transporta apenas para a tela do cinema a história – passada no norte de
Itália, no século XVI – da tal dama estrangeira e do seu marido que anda na
guerra, o nobre germânico Von Ketten, mas capta a poesia da espera em imagens vibrantes
que nos interpelam a retina e o espírito.
Por falar em espírito,
talvez seja mesmo isso que também define aqui a presença da atriz e cantora veterana
Ingrid Caven (musa de Fassbinder), que cruza o filme como uma figura
anacrónica, ao mesmo tempo, orgânica e disruptiva, estranha e estética. Ela é o
“borrão” depois do quadro pintado, e a voz que canta amparada pela música de
José Mário Branco. A realizadora, Rita Azevedo Gomes, falou-nos de todos
estes contributos, da passagem por Berlim e do seu desejo de nadar contra a corrente.
Que sensações trouxe da
receção do filme no Festival Berlim?
São sensações mistas. Foi tudo tão rápido, voraz,
alucinatório, no sentido em que havia dificuldade em encontrar amigos, muita
gente a querer falar comigo, e por isso passei os dias em entrevistas e
conversas… Não vi filmes. Berlim pareceu-me um festival muito feroz, num certo
sentido, brutal. Por isso senti-me um bocadinho perdida, não tive bem a noção
do que estava a acontecer. Só quando voltei, já à distância, é que me apercebi
de que tinha havido um muito bom acolhimento ao filme. Portanto, nessa altura
fiquei um bocado com a sensação de que ainda não tinha ido…
Regressando ao início
de tudo, como é que acontece o seu encontro com o livro de Musil, que está na
base d’A Portuguesa, e depois a
adaptação da Agustina?
O meu encontro com o livro [Três Mulheres] foi uma coisa perfeitamente esporádica. Comprei-o
num alfarrabista no Porto porque engracei com a capa. Achei-a bonita, pronto. Já
não sei bem se foi nos 90 anos do Manoel de Oliveira ou no centenário do cinema
português, mas foi uma ocasião em que percorri os muito bons alfarrabistas do
Porto, quando ainda existiam. Portanto, comprei o livro, que ficou lá em casa
durante anos sem ser lido. E depois d’A
Conquista de Faro [2005], filme para o qual a Agustina me escreveu um
argumento, ficámos com uma relação mais próxima, de vez em quando falávamos,
encontrávamo-nos… Um dia, no grémio literário, estávamos a almoçar e veio à
baila o Musil. Ela falou-me de um conto que achava engraçado, que se chamava A Portuguesa. De repente lembrei-me que
tinha o livro, fui à procura dele e li-o… Um livro extraordinário. São três
contos fabulosos – só escolhi A
Portuguesa por causa do nome, qualquer um dos outros era igualmente
apelativo. Como a Agustina gostava muito deste conto, propus-lhe que escrevesse
uma adaptação cinematográfica. Ela disse “está bem” e assim foi. Claro que tive
de tratar dos direitos literários, o que se revelou uma batalha com o editor
alemão porque me pediam fortunas, mas ao fim de muitas cartas e telefonemas
consegui um preço acessível. Então a Agustina entregou-me, passado tempos, um
guião com oito páginas.
Os diálogos?
Basicamente diálogos. E eu li aquilo e fiquei um bocado
perplexa… Porque a pretexto da história do Musil ela acrescenta também uma
coisa muito enigmática, uma outra camada. O texto do Musil já tem imensos
aspetos que eu gosto, que é o que não está dito, o que não está explicado, o
que nos faz fazer perguntas. Ele escreve de uma maneira que faz surgir no
contexto da página uma frase sem antes nem depois, que não está ali a fazer
nada.
O filme também
beneficia desse enigma, daquilo que não é dito…
Pois… acho que a maneira de escrever, tanto do Musil como da
Agustina, dá-nos pedaços de vida. Não há o “Era uma vez”...
Não é previsível.
Não é previsível, exatamente. Gosto dessa espécie de fio que
não é linear, que não é ascendente e descendente, que não faz o movimento
inteiro… isso foi sugestivo. E há muitas coisas no filme que a Agustina deixou
para trás, ao adaptar o conto do Musil, que eu depois fui recuperar porque na
altura em que o li foram importantes para mim.
Então há ainda uma
terceira camada…
O que me competia a mim era – tendo de um lado a Agustina e
do outro o Musil – trabalhar as imagens. Através delas dizer alguma coisa que
não está dita nos textos.
Olhando para a sua obra,
há muito essa especificidade do texto literário – em A Colecção Invisível [2009], Stefan Zweig, em A Vingança de Uma Mulher [2012], Barbey
d'Aurevilly, em Correspondências [2016],
os poetas Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena… É apenas coincidência ou há
um gosto pela palavra enquanto matéria de cinema?
Não penso muito nisso. Acontece, como tudo na vida. Às vezes,
perante um texto – como foi o caso deste – acontece-me trazer logo as coisas
para o presente, parece-me que o autor está a falar de nós, e fala tão bem que
eu perco logo as pretensões de escrever diálogos. Não sei fazer isso. Às vezes
vejo filmes que visualmente até podem ter qualquer coisa, mas depois são tão
planos, tão banais de palavra… Eu pego nas coisas que me apetece dar ao mundo
para ouvir! Isso aconteceu-me muito com a Sophia e com o Sena. E o Musil e a
Agustina? Obviamente estão a falar de nós. A história passa-se no século XVI, mas
conflitos religiosos, conflitos de poder, conflitos de masculino e feminino…
está tudo por cá.
Por falar em
masculino/feminino, o que é que lhe interessa nesta personagem feminina da dama
portuguesa?
Esta pessoa é interessante porque não se percebe, não se sabe
o que é que lhe vai na cabeça, o que é que está no seu íntimo. Depois o que eu
aprecio é isto: fora com a psicologia! Hoje em dia precisa-se muito de dizer
“ah, a força da mulher”, não sei o que é isso! Por exemplo, voltando a Berlim,
disseram-me que havia lá uma grande percentagem de filmes de mulheres, e eu,
que não me tinha dado conta, só perguntei: “e os filmes são bons?” Esta coisa
da equidade parece-me completamente disparatada, porque não é assim que as
coisas vão mudar. As coisas mudam quando mudarem os salários, quando mudarem as
coisas da base.
Como se os filmes já
não valessem por si…
Veja-se agora os Óscares, os filmes que ganham o que é que
têm? São os temas. É a imagem que a América quer dar… Eu acho que o cinema vai
muito mais além do politicamente correto.
Neste sentido, A Portuguesa vem em contracorrente,
nega-se ao filme-tema.
Eu gosto de nadar contra a corrente. Já uma vez ia morrendo
afogada por, literalmente, nadar contra a corrente! (risos) Mas nem se trata
tanto de gostar, é uma necessidade, porque na verdade sofro com isso... Embora
esteja a haver uma generosa receção a este filme, mesmo cá sinto que há uma
resistência.
Talvez porque os olhos
não estão habituados a filmes em que cada plano é
uma composição rigorosa?
Tenho um enorme respeito pelo plano. Penso muito em como
compor uma imagem. Sou muito chata com tudo o que mexe, tudo o que está dentro
do plano – a luz, as pessoas… –, claro, dentro dos meios que temos. Porque, no
fundo, estamos a fazer um quadro.
É o bichinho de alguém
que passou pelas Belas Artes?
Não sei se é. Fui uma péssima aluna de Belas Artes… (risos)
Não tinha paciência para pintar, porque sozinha diante de uma tela sufoco! Daí
talvez o cinema… Eu fui para Belas Artes mas não era feliz à frente da tela,
preciso de pessoas, preciso de estar em comunicação. Portanto, pintura para mim
era uma catástrofe. Mas sim, há qualquer coisa de “como se estivesse a fazer um
quadro”, só que a matéria não é óleo, nem guaches, nem lápis ou aguarelas – é
luz. Gosto muito desta ideia, porque é tal e qual.
Falou aí das pessoas,
do coletivo. É um aspeto fundamental para si no trabalho artístico?
É. Mesmo com aquelas tensões todas que se sabe que são
inerentes às rodagens. Não imagina o gozo que me dá sentir que as pessoas estão
ali por algo que se está a tentar fazer. Dou um exemplo: um dia estava
desesperada porque tinha escolhido um sítio extraordinário onde havia grifos a
voar sobre as cabeças, e no dia em que lá vamos… nada. E eu queria, à força, os
grifos! (risos) De repente, o maquinista viu-me tão angustiada que começou aos
urros, a bater com umas coisas, e desatou tudo a voar! Momentos como este são
muito bons.
Nesse trabalho de
equipa, destaca-se a colaboração regular do veterano diretor de fotografia
Acácio de Almeida…
O Acácio… eu
acho que cada vez estamos melhores! (risos) A gente já não precisa de falar
muito. Entendemo-nos, e penso que é uma coisa mesmo recíproca.
Em relação à
protagonista, a Clara Riedenstein [John
From], parece uma escolha muito coerente com o filme em si: não é uma atriz
da moda, não vem das telenovelas e conserva uma certa pureza performativa… De
novo um aspeto contracorrente?
Absolutamente. Aí está o ponto. Não é uma atriz cheia de clichés e tiques. A verdade é que
pensei em muita gente, mas nada me satisfazia – mesmo atrizes que são boas
atrizes, não eram para isto. Eu não queria uma pessoa que sabe, queria alguém
que não sabe, assim como eu, numa de “vamos ver como se faz”. Ou seja, não
queria uma atriz fabricada, mas alguém que o é naturalmente. E para isso é
preciso uma certa inteligência, que acho que a Clara tem; uma maneira de
entender, de colocar algo numa frase, uma coisa muito pessoal… Para mim isso é
o talento. E este foi um encontro extraordinário, porque o filme depende muito
dela. Eu andava desesperadamente à procura de uma ruiva e não me apetecia nada
andar a pintar cabelos…
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Clara Riedenstein no filme |
Porquê que tinha que
ser ruiva?
Tem que ver com esta história, que ainda vem da Agustina:
ambas perguntávamo-nos porque é que o Musil escreve um conto que se chama “A
Portuguesa”. E há nas memórias de viagem do autor a descrição de um quadro com
uma mulher, que ele viu no Museu do Prado, que o impressionou muito. É um
quadro do Ticiano, e ela é a Isabel de Portugal – uma mulher extraordinária,
como depois fui averiguar… Ora a Isabel de Portugal é ruiva. E até isto é
importante para ir contra o estereótipo da mulher morena, de cabelo castanho,
olhos amendoados e ar melancólico… não obrigada. Quis combater a banalização.
Outra coisa que não é
nada banal no filme é a presença de Ingrid Caven – também ruiva – que se presta
a diversas interpretações. Deduzo que não fosse uma personagem escrita.
Não está no Musil nem na Agustina, ou seja, é a minha parte:
só existe no filme. Não me chegava estar a fazer um filme de época, bonitinho,
com vestidos lindos, precisava de fazer um rasgão naquilo tudo. E tinha um
desejo de trabalhar com ela que já vem de trás – era para ter entrado no Correspondências. Então vi esta figura,
que no fundo é a Ingrid Caven a ser ela própria, que atravessa o filme como uma
nota fora da composição, e que vem cantar poemas que têm que ver com o que se
está ali a passar… Claro que explicar-lhe qual era o seu papel não foi fácil,
porque não era um papel. Mas a certa altura surgiu a comparação com o anjo do
texto do Walter Benjamin sobre um quadro do Paul Klee. Enfim, depois disso já
ouvi muitas interpretações, mas para mim é só a Ingrid Caven que entrou no
filme.
Ela própria carrega uma
mitologia…
Sim, exato. Ela no cinema é um bocadinho isso, há uma irreverência
na maneira como canta.
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Ingrid Caven no filme |
Faz lembrar um pouco a Marlene
Dietrich, que tinha uma languidez única…
Precisamente. E a Ingrid Caven... eu e ela temos muitas
coisas em comum. Estou a falar da vidinha mesmo: sabemos o que é estar do lado
do underground, do marginal, dos
conflitos, lá está, contra a corrente. Portanto, ela é a personagem que puxa o
filme para o presente, até através do guarda-roupa. E as composições do José
Mário Branco são o remate… Outra pessoa que tem uma inteligência brilhante para
perceber o que é que se pretende, é muito fino a pegar nas coisas.
É com este tipo de
contributos que o filme se descola da ideia de perfeição?
Isto é como o Ticiano, que depois de pintar ia lá e
esborratava com os dedos. Eu preciso de estragar um bocadinho para depois ver.
(entrevista originalmente publicada no Diário de Notícias, numa versão mais curta)