«Navegavam bem, e o velho
mergulhou as mãos na água salgada e fez por manter claras as ideias. Havia
altos cúmulos e bastantes cirros por cima deles, e o velho sabia que assim a
brisa duraria a noite inteira. Fitava constantemente o peixe, para ter a
certeza de que era verdade.»
O Velho e o Mar, Ernest Hemingway
um livro que, através da narrativa simples como uma rajada de vento
que empurra as folhas secas para um canto, me fez sentir, na prosa, a poesia
que há no diálogo circunstancial entre o Homem e a Natureza, um duelo de titãs
que traduz igualmente o combate interior do ser humano, o seu dilema perante a
morte do “irmão”. na verdade, o Velho não tem dúvidas em relação à necessidade
de matar o Peixe, mas dignifica a posição natural de cada um. é num traço belíssimo
e minimalista, repito, numa rajada de vento, que Hemingway me fez chegar uma
consciência tão atemporal quão pessimista, uma espécie de “é assim, não pode
ser de maneira diferente”. será que o que se está a passar no nosso país se
inscreve no espírito deste breve conto? estarei a forçar uma relação?... bem,
quem pesca não é o Velho, quem é pescado não tem o porte deste Peixe. não há
sabedoria neste mar, não há lei natural, a luta é desigual e a fome que se mata
é a que não existe, a das barrigas cheias (ponto final parágrafo).
pensei em começar por dizer “um livro que faz sentir…”, mas gosto de
reportar as minhas experiências sem o ímpeto da universalidade, porque o sentir
ainda é do domínio individual, assim como a decisão de falar sobre O Velho e o Mar; podia ter sido outro livro a convocar o meu desejo de escrever sobre ele, mas este é daqueles que nos deixa a flutuar uns dias noutros mares.
ainda sinto a maresia inquieta a fustigar-me a cara.