segunda-feira, 29 de outubro de 2012

o velho e o mar


«Navegavam bem, e o velho mergulhou as mãos na água salgada e fez por manter claras as ideias. Havia altos cúmulos e bastantes cirros por cima deles, e o velho sabia que assim a brisa duraria a noite inteira. Fitava constantemente o peixe, para ter a certeza de que era verdade.»
O Velho e o Mar, Ernest Hemingway

 
um livro que, através da narrativa simples como uma rajada de vento que empurra as folhas secas para um canto, me fez sentir, na prosa, a poesia que há no diálogo circunstancial entre o Homem e a Natureza, um duelo de titãs que traduz igualmente o combate interior do ser humano, o seu dilema perante a morte do “irmão”. na verdade, o Velho não tem dúvidas em relação à necessidade de matar o Peixe, mas dignifica a posição natural de cada um. é num traço belíssimo e minimalista, repito, numa rajada de vento, que Hemingway me fez chegar uma consciência tão atemporal quão pessimista, uma espécie de “é assim, não pode ser de maneira diferente”. será que o que se está a passar no nosso país se inscreve no espírito deste breve conto? estarei a forçar uma relação?... bem, quem pesca não é o Velho, quem é pescado não tem o porte deste Peixe. não há sabedoria neste mar, não há lei natural, a luta é desigual e a fome que se mata é a que não existe, a das barrigas cheias (ponto final parágrafo).
pensei em começar por dizer “um livro que faz sentir…”, mas gosto de reportar as minhas experiências sem o ímpeto da universalidade, porque o sentir ainda é do domínio individual, assim como a decisão de falar sobre O Velho e o Mar; podia ter sido outro livro a convocar o meu desejo de escrever sobre ele, mas este é daqueles que nos deixa a flutuar uns dias noutros mares.

ainda sinto a maresia inquieta a fustigar-me a cara.

domingo, 21 de outubro de 2012

paisagem


ouso escrever sobre o nevoeiro, o mistério que exala das águas do rio, como o vapor da panela de sopa a cozer. coze-se o dia de amanhã, o devir. está ali, entre as reticências da bruma (gosto da palavra Bruma, quase parece o nome de uma pessoa, daqueles que vêm escritos nos olhos). para a receita de amanhã, sei que a tal hora tenho isto marcado, e mais à tarde devo ir àquele sítio e aqueloutro. mas olho para o nevoeiro e penso: que mistérios, que acasos fermentam nas águas do rio, contra a matemática da agenda diária? para lá da bruma, está o objeto da minha escrita, o que não sei, o que tenho conservado no livrinho das espectativas, o que permanece no item da possibilidade, justamente aquilo sobre o qual não posso escrever factualmente. sou da especulação verbal sobre o não acontecido, mas não o enumero, prefiro deixar que a vivência do nevoeiro me exalte no espírito a pergunta: o que foi que me esqueci de agendar para amanhã? deliciosa ignorância.
o privilégio de conviver muitas vezes com uma parede nebulosa em frente à janela.
 
William Turner, Storm Clouds

sábado, 20 de outubro de 2012

I


Perdido
Finge estar perdido
Está onde pode ser achado
Na nudez branca da almofada
Insinua-se com cor escura
Um desenho a lápis na folha imaculada.
Tem segredos na fibra
Folha caída de árvore abanada.
Há um cabelo na almofada
Perdido
Feito linha que esboça o encontro.
 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

frio


estão quase a chegar os dias com as melhores manhãs. o cinzento a entrar pela frecha das portadas, a anunciar o frio que está lá fora. a chávena de cappuccino a fumegar entre as mãos que a seguram, como a primeira prenda do dia. tenho os pés inquietos, dentro das meias felpudas. vão andar muito pela cidade, vão à procura, vão ao encontro, vão apressados, vão por eles próprios. os meus pés já conhecem os caminhos dos dias, têm o mapa da rotina nos calcanhares. quem me dera saber assobiar, para quebrar a rotina. estão quase a chegar os dias que pedem casacos quentes - além do cappuccino. hoje já pus mais uma manta na cama. amanhã acabo o livro que estou a ler, está demasiado conotado com os dias de calor. talvez aquele peluche também não esteja bem ali... podes chegar frio, estou quase pronta.
(descalça: já pede meias.)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

o medo


Disse ao céu: tenho medo
O céu respondeu com um azul imperturbável
Pedi à nuvem: diz ao céu que tenho medo
A nuvem desenhou uma indiferença fofa
Vi um pássaro voar e gritei: diz à nuvem que diga ao céu que tenho medo
O pássaro bateu asas com a languidez escrita nas penas
No desamparo da natureza encontrei a força
Não posso ter medo se ela não o conhece
Disse ao céu: és azul
Ele pediu à nuvem que chamasse o pássaro para me trazer a mensagem:
Sou azul e não sei o que é o medo
Qual é a sua cor?