terça-feira, 11 de agosto de 2015

cinema


«Com o livro na mão, repeti os passos dele, encontrei o cinema aonde ele ia procurar a rapariga, comprei um bilhete para a última sessão. Não havia quase ninguém na sala e pude ocupar sem dificuldade a cadeira indicada no romance: no canto do fundo, à esquerda, junto da luz vermelha da saída de emergência. O cinema tinha uma vasta decrepitude de veludos e ouros falsos maltratados por um abandono talvez anterior aos anos da guerra. A luz dos globos amarelos que pendiam do tecto tingiam o ar com um resplendor toldado, como de lamparinas de azeite. O protagonista do romance só permanecia meia hora no cinema, devorado, ainda me lembrava das palavras exactas, por uma impaciência febril. Se ao fim de meia hora ninguém se sentasse ao meu lado, deveria ir-me embora e voltar no dia seguinte. (...) Para me distrair nos últimos minutos de uma espera que já suspeitava ser inútil, olhei distraidamente para a tela. Surpreendeu-me a sonora voz espanhola de Clark Gable. Alguém passou pelo cortinado vermelho da saída de emergência e acercou-se de mim, uma mulher de blusa branca que trazia um livro na mão. Não me voltei para olhá-la quando se sentou ao meu lado.
- Gostou do romance? - perguntou, tocando-me na mão.
- Ainda não acabei.
- Melhor assim. Não acabe.»

Beltenebros, Antonio Muñoz Molina


                                                                                                                                              [Tom Waits]


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