sábado, 15 de agosto de 2015

cinema II

«... ia-me invadindo uma lenta indolência que apagava o tempo e a ordem dos dias. Levantava-me tarde, e ao acordar ouvia a máquina de escrever, e algumas nem sequer saía para seguir Walter. Ficava a ver filmes que já quase sabia de cor, deslocava-me para uma das poltronas do fundo quando se apagavam as luzes e adormecia ouvindo as marchas militares dos jornais de actualidades, deixando para mais tarde a obrigação de actuar e de fazer caso de Valdivia, que também nada fazia, que certos dias passava horas sentado diante de Rebeca Osorio, vendo-a escrever. Era como se também para ele o mundo se resumisse aos limites fechados do Universal Cinema. (...)
Valdivia, como Walter, tinha tido sempre o poder dos actos. O meu dever era olhar sem que soubessem que olhava. Uma tarde vi talvez o que não devia e soube por que motivo Valdivia parecia tão tomado como eu próprio pela inércia do adiamento. (...) Walter não estava. Fui procurá-lo pelas ruas desertas de Madrid.
Eu caminhava atrás dele pela cidade mas não tinha a sensação de intempérie: em toda a parte, o ar era tão cálido e tão rarefeito como no interior do Universal Cinema, e a luz igualmente cinzenta. Cada um de nós era a sombra multiplicada dos outros e procurávamo-nos e fugíamos tão solitariamente por Madrid como quando o último espectador abandonava a sala e os porteiros se retiravam e não ficava mais ninguém além de nós naquele edifício, nos corredores e vestíbulos decorados com cartazes de filmes e retratos de atrizes pintados à mão.»

Beltenebros, Antonio Munõz Molina



(Goodbye, Dragon Inn, Tsai Ming-Liang)

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