sábado, 27 de julho de 2013

paisagem invariável

neste lento fim de tarde
vejo da minha janela
as luzes que (também lentamente)
se levantam a tremer
do outro lado do rio.
pergunto-me se são de uma casa
de um candeeiro de rua
de um monumento importante
de um barco
de uma festa.
são o que os meus olhos pensarem.
penso em tudo,
menos nas hipóteses físicas da luz.
são desejos que pintam a cidade
do outro lado do rio.

(City Lights, Chaplin)






domingo, 14 de julho de 2013

o gato

essa penugem macia que faz de ti o mais apetecível dos toques desassossega a vontade, quando não estás por perto. anda, chega-te aqui. com uma mão no teclado e a outra pousada num dorso quente e delicado, escrevo em suavidade de consciência. desconheço os caminhos que percorro, enquanto tento as palavras certas, como a fruta madura que se colhe na época. é difícil encontrar o ponto intermédio entre o verde e o já podre. a frescura escapa-me. mas com uma mão pousada no teu gracioso dorso, faço, tranquila, a caminhada entre as árvores. porque é tão agradável escrever, mesmo que não se saiba ao certo o quê. vejo ali um pêssego que me parece estar bom para colher. vou correr para ele, mas, entretanto, não saias daqui. não deixes o lugar literariamente cativo que é o simples estar ao alcance do meu toque.


(Pintura: Pierre-Auguste Renoir)


sábado, 6 de julho de 2013

responsabilidade

derramo calor pelos lençóis acostumados. vem, de longe, percorrer-me uma aragem de sono. o eco da última frase que hoje li no livro à cabeceira, Memórias de Adriano, ainda ressoa no espírito: “(…) Sentia-me responsável pela beleza do mundo.” sinto-me assim, em plano de humanidade com Adriano. não pelo grande desígnio de que se autoinveste um imperador, mas pela vontade do servo que ainda procura a beleza nos pequenos canteiros da realidade. todos os dias tento trazer o máximo de flores para te oferecer, num ato de responsabilidade por assegurar que os teus olhos verão um pouco da beleza do mundo.



 (toco com o dedo na bolha da tua presença. não rebenta, não se afasta: molda-se ao meu corpo como a melodia da noite que nos abarca.)



(pintura: Pierre-Auguste Renoir)