fumo um cigarro. uso como
cinzeiro um copo com água. vejo as cinzas a caírem leve e docemente, não como
imagem de um resíduo, mas como a poesia da neve ou das folhas de outono, que
acariciam o seu último destino com o toque suave da queda. olho para as cinzas
e penso na minha janela de infância, esse ecrã gigante que me contava histórias
ainda antes do cinema ou dos livros. ali vai o gato que saltava os muros para
apanhar os camaleões… olha, e ali está o meu vizinho, a regar as plantas da
varanda; acolá o menino da bicicleta vermelha que fazia corridas consigo mesmo
e, ao fundo da rua, o cão de olhar triste que guardava o portão da sumptuosa morada
da dona Isabel. cada uma destas memórias são still images reveladas pelo olho fabulista da minha janela, que
recordo através das cinzas dançantes na água. neva. é inverno na minha
janela. caem folhas amarelas e alaranjadas. é outono. amanhã é primavera, e
depois é verão. continuo a fumar e a deitar as cinzas para o copo com água. é bom
sentir as memórias sazonais da infância. nunca nevou na minha janela, mas eu gosto de pensar que sim. e penso que sim, porque o copo evoca essa falsa memória.
não mais o cinzeiro terá utilidade. há magia
nesta simples alteração.
Sem comentários:
Enviar um comentário