Pinta primeiro uma gaiola
com a porta aberta
pinta a seguir
qualquer coisa bonita
qualquer coisa simples
qualquer coisa bela
qualquer coisa útil
para o pássaro.
Agora encosta a tela a uma árvore
num jardim
num bosque
ou até numa floresta.
Esconde-te atrás da árvore
sem dizeres nada
sem te mexeres…
Às vezes o pássaro não demora
mas pode também levar anos
antes que se decida.
Não deves desanimar
espera
espera anos se for preciso
a rapidez ou a lentidão da chegada
do pássaro não tem qualquer relação
com o acabamento do quadro.
Quando o pássaro chegar
se chegar
mergulha no mais fundo silêncio
espera que o pássaro entre na gaiola
e quando tiver entrado
fecha a porta devagarinho
com o pincel.
Depois
apaga uma a uma todas as grades
com cuidado não vás tocar nalguma das penas
Faz a seguir o retrato da árvore
escolhendo o mais belo dos ramos
para o pássaro
pinta também o verde da folhagem a frescura do vento
e agora espera que o pássaro se decida a cantar.
Se o pássaro não cantar
é mau sinal
é sinal que o quadro não presta
mas se cantar é bom sinal
sinal de que podes assinar.
Então arranca com muito cuidado
uma das penas do pássaro
e escreve o teu nome num canto do quadro.
(tradução de Eugénio de Andrade do original “Pour faire le portrait d’un oiseau” de Jacques Prévert)
que o pássaro de cada um de nós cante no novo ano, para que possamos assinar, no quadro da nossa vida, a autoria da felicidade.
«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.» Rimbaud
domingo, 30 de dezembro de 2012
domingo, 23 de dezembro de 2012
feliz natal
continuo, na boa tradição de Charles Dickens, a gostar do Natal. faço de conta que lá fora há neve, para parecerem mais verídicas as minhas memórias de infância dos natais que vivi pelos livros, ou mesmo os que me deram os filmes. o meu Natal verdadeiro é sempre bom, especial, mas não posso esquecer a origem do espírito dessa época em mim.
Christmas in Connecticut (1945)
quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
o pavio até ao fim
Acabou.
Acendo outra vela
Deixo o pavio arder até ao fim.
Acabou.
Acendo outra vela
Deixo o pavio a arder até ao fim.
Renovo a chama que simula a tua presença
Gosto de te sentir na madrugada do quarto
A olhar comigo o livro que tenho nas mãos
Esse a que dás clareza
Com a vibração luzente da flama.
Vejo que o pavio está quase no fim
Vou buscar outra vela.
Não te apagues antes de substituir
O escuro faz medo.
Acendo outra vela
Deixo o pavio arder até ao fim.
Acabou.
Acendo outra vela
Deixo o pavio a arder até ao fim.
Renovo a chama que simula a tua presença
Gosto de te sentir na madrugada do quarto
A olhar comigo o livro que tenho nas mãos
Esse a que dás clareza
Com a vibração luzente da flama.
Vejo que o pavio está quase no fim
Vou buscar outra vela.
Não te apagues antes de substituir
O escuro faz medo.
(Estás aqui não estás?)
Vem depressa iluminar-me
À distância do meu gesto de acender a próxima vela.
Vem depressa iluminar-me
À distância do meu gesto de acender a próxima vela.
terça-feira, 18 de dezembro de 2012
laço
pus um laço no cabelo para ter mais confiança ao ler-te a
fantasia dos contos. o laço amarra o cabelo, para se descortinar na minha cara
o sorriso embrionário das palavras.
ainda estás a escutar?
dorme, bebé.
amanhã finjo outra vez que sou princesa, para
te embalar com histórias de encantar.
domingo, 9 de dezembro de 2012
pedir um desejo
ela agitava o globo de neve como se agitasse o mundo, para
libertar o pó dos sonhos.
(os sonhos mágicos)
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
cafés apressados
foste embora com o adeus pendurado nos lábios. a chávena
vazia ecoa agora a ausência do café que consumias em pequenos tragos, falando
do futuro, dos teus projetos. há cinzas em cima da mesa, sintoma do entusiasmo do
discurso que te levava a falhar o cinzeiro. os sonhos colocam-te uma prega no
canto dos olhos, um regozijo na pele, como os grandes planos do cinema gostam
de mostrar. olha para ti, no grande ecrã: o Sonhador. todos deixam passar este
filme – sala vazia -, porque não condiz com o pessimismo dos tempos… continuo
aqui sentada, tributária da amizade que saiu a correr com o adeus pendurado nos
lábios. o mais curioso é que nunca ouço esse adeus, mas vejo-o suspenso no
vento com que sais apressado. amigo, não deixes de sonhar e diz-me adeus à
despedida. até à próxima, com uma chávena cheia.
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
beata
Já não sei
onde deixei
a beata do cigarro
que fumei a pensar em ti.
Queria guardá-la
conversar com ela
dizer o quanto
o fumo era palavra.
Fumei para não dizer
fumei para guardar segredo
fumei para fazer
do verbo exalação.
Não é agradável
o cheiro do tabaco
mas fumá-lo
foi estar contigo
foi um ato perfumado.
Procuro a beata
chamando por ti
posso tê-la apagado mal
tão imersa estava
na chama
que me tomava o pensamento.
Não sei
onde deixei cair a beata.
Talvez
ela saiba guardar segredo
afinal, é só uma palavra
mas é uma palavra
que devora tudo.terça-feira, 20 de novembro de 2012
sábado, 10 de novembro de 2012
naquele dia em que usei chapéu
havia qualquer coisa de
enunciativo naquele dia em que usei o chapéu para ti. chovia, e eu não sabia
que o usava para ti. saí sorrateira pela porta, como se fosse vigiada. talvez até
fosse, por um deus qualquer. talvez. desci as escadas como se quisesse muito ir
andar à chuva. usava o chapéu para ti, mas ignorava levemente esse propósito. só quando à noitinha me escreveste dizendo «hoje estavas muito bonita. fizeste-me pensar numa actriz de quem gosto muito, num filme de que gosto muito, a partir de um livro que...isso. que pena a humanidade ter deixado de usar chapéu»... só aí alcancei a minha
intenção dissimulada. naquele dia, quis ser toda a humanidade, todos os tempos…
para ti. cabia tudo no meu chapéu.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
o velho e o mar
«Navegavam bem, e o velho
mergulhou as mãos na água salgada e fez por manter claras as ideias. Havia
altos cúmulos e bastantes cirros por cima deles, e o velho sabia que assim a
brisa duraria a noite inteira. Fitava constantemente o peixe, para ter a
certeza de que era verdade.»
O Velho e o Mar, Ernest Hemingway
um livro que, através da narrativa simples como uma rajada de vento
que empurra as folhas secas para um canto, me fez sentir, na prosa, a poesia
que há no diálogo circunstancial entre o Homem e a Natureza, um duelo de titãs
que traduz igualmente o combate interior do ser humano, o seu dilema perante a
morte do “irmão”. na verdade, o Velho não tem dúvidas em relação à necessidade
de matar o Peixe, mas dignifica a posição natural de cada um. é num traço belíssimo
e minimalista, repito, numa rajada de vento, que Hemingway me fez chegar uma
consciência tão atemporal quão pessimista, uma espécie de “é assim, não pode
ser de maneira diferente”. será que o que se está a passar no nosso país se
inscreve no espírito deste breve conto? estarei a forçar uma relação?... bem,
quem pesca não é o Velho, quem é pescado não tem o porte deste Peixe. não há
sabedoria neste mar, não há lei natural, a luta é desigual e a fome que se mata
é a que não existe, a das barrigas cheias (ponto final parágrafo).
pensei em começar por dizer “um livro que faz sentir…”, mas gosto de
reportar as minhas experiências sem o ímpeto da universalidade, porque o sentir
ainda é do domínio individual, assim como a decisão de falar sobre O Velho e o Mar; podia ter sido outro livro a convocar o meu desejo de escrever sobre ele, mas este é daqueles que nos deixa a flutuar uns dias noutros mares.
ainda sinto a maresia inquieta a fustigar-me a cara.
domingo, 21 de outubro de 2012
paisagem
ouso escrever sobre o nevoeiro, o
mistério que exala das águas do rio, como o vapor da panela de sopa a cozer. coze-se
o dia de amanhã, o devir. está ali, entre as reticências da bruma (gosto da
palavra Bruma, quase parece o nome de
uma pessoa, daqueles que vêm escritos nos olhos). para a receita de amanhã, sei
que a tal hora tenho isto marcado, e mais à tarde devo ir àquele sítio e aqueloutro.
mas olho para o nevoeiro e penso: que mistérios, que acasos fermentam nas águas
do rio, contra a matemática da agenda diária? para lá da bruma, está o objeto
da minha escrita, o que não sei, o
que tenho conservado no livrinho das espectativas, o que permanece no item da possibilidade, justamente aquilo sobre o qual não posso escrever
factualmente. sou da especulação verbal sobre o não acontecido, mas não o
enumero, prefiro deixar que a vivência do nevoeiro me exalte no espírito a
pergunta: o que foi que me esqueci de agendar para amanhã? deliciosa ignorância.
o privilégio de conviver muitas vezes com uma parede nebulosa em frente à janela.
William Turner, Storm Clouds
sábado, 20 de outubro de 2012
I
Perdido
Finge estar perdido
Está onde pode ser achado
Na nudez branca da almofada
Insinua-se com cor escura
Um desenho a lápis na folha imaculada.
Tem segredos na fibra
Folha caída de árvore abanada.
Há um cabelo na almofada
Perdido
Feito linha que esboça o encontro.
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
frio
estão quase a chegar os dias com as melhores manhãs. o cinzento a entrar pela frecha das portadas, a anunciar o
frio que está lá fora. a chávena de cappuccino a fumegar entre as mãos que a
seguram, como a primeira prenda do dia. tenho os pés inquietos, dentro das meias felpudas. vão andar
muito pela cidade, vão à procura, vão ao encontro, vão apressados, vão por eles
próprios. os meus pés já conhecem os caminhos dos dias, têm o mapa da rotina
nos calcanhares. quem me dera saber assobiar, para quebrar a rotina. estão quase a chegar os dias que pedem casacos quentes - além
do cappuccino. hoje já pus mais uma manta na cama. amanhã acabo o livro que estou a ler, está demasiado conotado com os dias de calor. talvez aquele peluche também não esteja bem ali... podes chegar frio, estou quase pronta.
(descalça: já pede meias.)
sexta-feira, 5 de outubro de 2012
o medo
Disse ao céu: tenho medo
O céu respondeu com um azul imperturbável
Pedi à nuvem: diz ao céu que tenho medo
A nuvem desenhou uma indiferença fofa
Vi um pássaro voar e gritei: diz à nuvem que diga ao céu que tenho medo
O pássaro bateu asas com a languidez escrita nas penas
No desamparo da natureza encontrei a força
Não posso ter medo se ela não o conhece
Disse ao céu: és azul
Ele pediu à nuvem que chamasse o pássaro para me trazer a mensagem:
Sou azul e não sei o que é o medo
Qual é a sua cor?
sábado, 29 de setembro de 2012
Poema
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
máquina inteligente
ei-la sentada no intervalo do que gostaria de sentir e do
que sente. um mal-estar por não saber algemar as emoções ruins, uma falha na
máquina geradora das lágrimas (que só deveria ser acionada em caso de
emergência). não é uma máquina inteligente. por isso, ela baloiça - como que a pedir
ao vento para secar as emoções estranhas.
caiu uma folha seca da árvore. será o outono?
sábado, 8 de setembro de 2012
telhados
abandono a leitura do livro. fecho-o com a lentidão de quem
ainda vigia a compreensão exata da última frase. o sol desmaia sobre o rio, e
eu, sobre os telhados de Lisboa repouso o olhar, como se esse olhar fosse um
corpo fatigado, que se estende ao comprido numa cama de telhas. o tempo
escreveu mais uma preciosa página na minha vida, um dia que termina assim, comigo a olhar
para o laranja velho dos telhados. sinto-me um postal daqueles que abundam nas mal-amanhadas
montras das lojas de souvenirs. envio-me
para um endereço incógnito, esperando o toque de umas mãos que abram o envelope e o
tomem ansiosamente para ler a mensagem. o postal não leva nada escrito, é o silêncio de uma
imagem onde figuro eu a repousar o olhar
sobre os telhados de Lisboa. a verdadeira fotografia está, contudo, na
minha íris, que apenas é apanhada de perfil.
sou feliz. guardo a imagem do meu descanso na memória de outra imagem. penso
em retomar a leitura do livro. sim, é o melhor que faço.
(está um gato no telhado.)
segunda-feira, 3 de setembro de 2012
Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.
Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
(The Big Parade, King Vidor)
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
espelho
olho-me ao espelho, porque tenho medo de perder a memória da
minha cara, tenho medo de não me reconhecer. o tempo que passa e amadurece os
traços, é o mesmo tempo que quer descaracterizar. o espelho é a crença numa
visão, não uma visão crível só por si. o espelho apazigua, mas por vezes mente
ou exagera. estou tranquila por verificar, no exame quotidiano, que não mudei
muito, que algo infantil permanece no parêntesis do meu sorriso, contudo, há um
excesso de idade no meu olhar, não nos olhos, mas no olhar. olho como quem vê o
que foi e o que será, como quem carrega o tempo na íris. reconheço-me no que
fui e no que serei, porque a mentira do espelho é a verdade interior. somos a
constância e a mudança, num só corpo.
(Je vous salue Marie, Godard)
terça-feira, 14 de agosto de 2012
a sós
em público, cumprimos o pensamento de Saint-Exupéry que diz que "amar é olhar juntos na mesma direção", assistimos ao espetáculo da vida, lado a lado. na intimidade, despidos dos adereços, olhamo-nos, simplesmente, na timidez do confronto das pupilas que se adoram.
(Imagem: Elena et Les Hommes, Jean Renoir)
sábado, 11 de agosto de 2012
areia
enterro a mão na areia, até à profunda camada em que ela reserva a água. penso na fome da superfície, que devora a espuma das ondas, assim que elas se apartam para retomar o seu movimento natural. somos tão parecidos com a areia, famintos de pele, reservadores de sentimentos. há humidade dentro de nós. somos grutas com estalactites de desejo, submundos de uma superfície normalizada, como a areia lisa depois da onda. olho para o céu e sinto uma espécie de trindade do ser: o infinito, o corpo, e o coração, esse que toco, húmido e moldável, através da mão enterrada na areia. com a cabeça nas alturas e uma mão nas profundezas, encontro o ponto sísmico das memórias do meu tacto.
terça-feira, 7 de agosto de 2012
quando
algo se expressa por quantos poros tem a pele. uma prega
de sorriso nos olhos, a testa esticada de contentamento, os lábios - qual fatia de melão fresca -, em frémitos
de alegria, as mãos, pura reprodução do gesto infantil, procuram-se uma à outra, na efervescência
da expectativa… uma surpresa. alguém chegou. bateram à porta.
entretanto, já todo um processo químico reformulou a fisionomia e adocicou a saliva.
vai abrir.
(tinha saudades tuas)
quinta-feira, 2 de agosto de 2012
olha a luz
se passares por um lugar que intuas que um dia será nosso,
deixa a marca do futuro, sente a luz que a bem-fada; ela - a marca - permanecerá até ao amanhecer desse dia, e
cumpriremos o prazo inscrito na nuvem do tempo. não será o único lugar, e o mais importante, como nas fotografias, é a luz. há lugares
que chamam significados longínquos, tecidos pela primeira passagem de um dos
dois, lugares que nos conhecem pelos passos, pelos sentimentos que
transportamos na planta do pé. é que somos amor da cabeça aos pés, iluminados a partir do interior, e isso até
as pedras da calçada podem reconhecer. vejo-te nesse lugar, a imaginar como
será, já que não pode ser agora. deito a cabeça sobre a almofada da fantasia
e voo até aí. ainda que nunca se concretize, foi bom estar contigo nesse lugar,
respirarmos juntos o mesmo momento e recebermos a mesma luz oblíqua de um sol
cansado mas feliz de olhar para nós, fórmula ímpar.
quinta-feira, 26 de julho de 2012
mão
a mão do sonho percorria o seu corpo, como se conferisse a forma da matéria sedosa; a mão real pendia da cama, como sintoma da entrega total ao estado letárgico. a mão do sonho era meiga, feliz no toque e portadora de um sentimento que se expressava na ponta dos dedos; a mão real tinha pequenos espasmos de prazer, durante o sono. a mão do sonho encontrara o seu abrigo; a mão real contraiu, agarrando-se veemente ao lençol. a mão do sonho transpusera a fronteira. essa.
segunda-feira, 16 de julho de 2012
os primeiros
naquele tempo em que as existências ainda não povoavam a terra. naquele tempo em que o eco reinava. naquele tempo em que o tudo era nada. naquele tempo da combustão do vazio. naquele tempo que chamava outro, o próximo. naquele tempo, surgiram as nossas peles. nasceu a comunicação. 1+1=2
domingo, 1 de julho de 2012
fim de tarde
o nascimento da noite desenha-se aos olhos que se entregam à contemplação. é sábio esse lápis que faz das trevas uma imagem iluminada. o horizonte vai adquirindo um sfumato intenso e gradual, à medida da declinação do sol cansado. as nuvens perdem o seu aspeto fofo, para assumirem a forma de uma linha reta do fumo de um cigarro científico. a linha que emana do meu cigarro é sentimental, é uma serpente fantasma que se mistura com o ar, perdendo-se na brisa deste fim de tarde. é belo o anoitecer, e cheio de luz, uma luz interior que afasta as trevas. sou alimentada dessa luz. acabei a minha tela; ela guarda em si o tempo: era dia, agora é noite. do silêncio da minha casa observo a janela em frente, que anuncia o acender automático de uma lâmpada. é tão mais sublime o movimento natural das coisas. essa lâmpada, não pude eu desenhar o seu acender; a velocidade do tempo ganhou à minha destreza de o captar numa composição pictórica.
a natureza demora-se. é uma mulher.
lá está ela, a Lua, recortada por mim. luz entre as trevas.
sábado, 30 de junho de 2012
em silêncio
estás inteiro aqui?
– pergunto-me em silêncio. há qualquer coisa que tenho medo de procurar saber,
de insinuar ou inventar. há qualquer coisa que, não sabendo, não quero saber,
porque é má, mesmo na ignorância. vai-te embora coisa má, não me tentes.
estás inteiro aqui? sim, estou.
The Kiss, Klimt
quarta-feira, 27 de junho de 2012
resposta
chamo-te, para além da voz. é um caminho que traço com o
dedo, na medida da página do livro. chamo-te pelo toque das palavras lidas e imaginadas, onde, inquieta, me
escondo, como se atrás de uma parede, à espreita, para te apanhar. conto até dez, abro os
olhos e corro sem direção, porque estás em todos os lugares, e todos os lugares fingem a tua sombra. ao chamar-te
encontro-te antes dos meus olhos. és uma resposta que se sente.
chamo-te. escondeste-te atrás da lua. vigias a minha noite.
sábado, 23 de junho de 2012
glass
tenho pensamentos de vidro a partirem-se dentro da minha
cabeça (preciso de uma onomatopeia para isto). copos de vinho que se quebram depois de vazios. bebes o vinho e o
material estala. tu, sim. apressa-te a vir encher de novo o copo, antes que o
vidro sofra a ausência da tua boca. o vidro não chora, mas corta. tenho medo de
apanhar os cacos e ferir um dedo. está tudo espalhado. vem ajudar-me a varrer
os vidros.
traz vinho, não tragas mais copos.
sábado, 16 de junho de 2012
pó na estante
limpo o pó à estante que espera. a estante que exprime a
espera pelo pó que acumula. a estante cujo pó é a marca do tempo que passa. quando foi a última vez que olhaste para mim?, diz ela. limpo os vestígios da minha demora. a estante pede.
eu tinha saudades daquilo que ela sustém.
limpar o pó tem algum lirismo.
sexta-feira, 15 de junho de 2012
sábado, 9 de junho de 2012
tu
antes de
existires para mim, já te pronunciava na segunda pessoa do singular. eras sujeito
da frase e verbo intransitivo. Tu existes:
o teu nascimento gramatical para mim.
Eu existo,
Tu existes,
Ele existe…
não. só se “ele” fosse a soma de nós os dois, uma espécie de reflexo de duas
existências. Eu e Tu - assim aprendi a conjugar os verbos, num regime egoísta. talvez.
antes de
existires para mim, já eu te predicava nos textos da escola. se escrevia “chove”,
logo me sentia perdida pela ausência do sujeito na frase. porquê que não
podia escrever “tu choves”? onde estavas
quando chovia? esperavas por mim numa rua qualquer, mesmo desconhecendo a minha
existência gramatical? eu pensava que sim, então aprendi a construir uma oração com todos
os seus constituintes semânticos no lugar certo. Tu estavas
na frase, e por isso ela fazia sentido.
antes de
existires para mim, a minha palavra escrita já te denunciava. era um ditado do
coração.
antes do corpo, era o verbo.
sexta-feira, 1 de junho de 2012
lugar
todos os lugares têm um sentido de eternidade. têm o sempre escrito nas pedras da calçada. o sempre da passagem, o cheiro dos acontecimentos, a música do quotidiano, o sorriso das crianças, a mágoa dos corações cinzentos.
sempre que passo aqui sou um eu vacilante entre a respiração do ontem e a voz do amanhã,
um híbrido na eternidade do agora.
(precisei de escrever para preservar o eco do agora.)
Robert Doisneau
quinta-feira, 24 de maio de 2012
fica
há um pássaro dentro de mim. às vezes sou o céu, às vezes sou a árvore, outras o ninho ou
então a gaiola. ser-se imenso, ser-se suporte, ser-se conforto ou ser-se prisão
são quatro estados. se sou o céu, tudo é espaço
que cede espaço a mais espaço, tudo é liberdade; sou respiração colorida. voa voa, que
as tuas asas não esgotem a vontade de azul… se sou a árvore, procuro oferecer o
ramo mais seguro, o ponto onde a vista é mais bonita, onde se pode fazer um
ninho; sou madeira generosa. vem, ocupa este braço que te dou, constrói aqui a tua casa. se sou o
ninho, quero aconchegar as asas fatigadas do voo, quero ser a cama aberta que
se consagra à missão plena do descanso; sou as mãos côncavas de uma criança. quando chegares, só tens de te deixar
levar no embalo do teu próprio cansaço. quantos céus voaste hoje? se sou gaiola…
não sou digna de ter um pássaro dentro de mim. não posso prender o movimento poético
de umas asas. não posso.
BlueBird, quero que voes sempre tomando-me como teu
infinito, que te apoies no ramo que te dá a vista mais privilegiada e que te renoves
sempre do cansaço do voo no ninho que te fiz. BlueBird, fica, sem sentires as
grades de uma gaiola. onde estás?
sexta-feira, 18 de maio de 2012
cinzas
fumo um cigarro. uso como
cinzeiro um copo com água. vejo as cinzas a caírem leve e docemente, não como
imagem de um resíduo, mas como a poesia da neve ou das folhas de outono, que
acariciam o seu último destino com o toque suave da queda. olho para as cinzas
e penso na minha janela de infância, esse ecrã gigante que me contava histórias
ainda antes do cinema ou dos livros. ali vai o gato que saltava os muros para
apanhar os camaleões… olha, e ali está o meu vizinho, a regar as plantas da
varanda; acolá o menino da bicicleta vermelha que fazia corridas consigo mesmo
e, ao fundo da rua, o cão de olhar triste que guardava o portão da sumptuosa morada
da dona Isabel. cada uma destas memórias são still images reveladas pelo olho fabulista da minha janela, que
recordo através das cinzas dançantes na água. neva. é inverno na minha
janela. caem folhas amarelas e alaranjadas. é outono. amanhã é primavera, e
depois é verão. continuo a fumar e a deitar as cinzas para o copo com água. é bom
sentir as memórias sazonais da infância. nunca nevou na minha janela, mas eu gosto de pensar que sim. e penso que sim, porque o copo evoca essa falsa memória.
não mais o cinzeiro terá utilidade. há magia
nesta simples alteração.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
vestido
ainda o tenho vestido. já saí do sonho e ele permanece no meu corpo. não me apetece despi-lo. o tecido não pertence a este mundo, e se o deixo ficar sobre a pele, torno-me imune à tangibilidade do espaço. nada me toca, nada é tocado por mim. o tempo não tem medida, é um lápis que partiu a ponta e não tem afia. parou. nada mais se escreve. estou à espera que o sonho me chame novamente à sua continuidade, esse lugar onde se escreve, com esferográfica, uma composição de tema livre. o tempo que parou aqui, esse lápis com a ponta partida e sem afia, pesa-me sobre as costas. preciso de descansar um pouco. vou baixar a cabeça. ainda o tenho vestido.
Sommarlek, Bergman
segunda-feira, 14 de maio de 2012
in-visível
sou invisível. sinto-me ruborizar, mas sou invisível. o movimento lógico das teclas denunciam os dedos apressados que digitam a emoção. sou invisível. há uma camisa azul envergada por um corpo. o corpo não é meu, o cheiro não me pertence. sou invisível. a janela está aberta, para que o quarto receba o último suspiro do dia. que pele almeja essa brisa? sou invisível. há um rádio ligado; a música amplia o espaço. quem precisa desse espaço? sou invisível. um livro aberto denuncia a página preferida, marcada e sublinhada. de quem é este livro? sou invisível. sinto-me ruborizar, mas sou invisível. ninguém vê. ninguém pode ver o quanto estou feliz, porque sou invisível.
tenho comigo a palavra que me dá a invisibilidade. está entre os meus pertences.
está em toda a parte.
é bela, é pura, é alma.
terça-feira, 8 de maio de 2012
vestígios
no silêncio
está a respiração do que não acontece. o nada revestido de uma pele qualquer. pode
ser a minha. aqui e ali vêem-se peças de roupa espalhadas que, pela disposição selvagem, pedem para serem
pintadas ou fotografadas. os vestígios não fazem barulho, ficam assim, amuados,
como crianças de castigo, filhos de um momento. ainda quentes, esses vestígios vivem
da respiração do que não acontece porque já aconteceu. o que aconteceu ficou seco como a borra de café no fundo da chávena. não se lava a chávena. não.
o silêncio habita. ele
chega, senta-se e pinta o quadro.
aquilo que já aconteceu mas ainda respira.
Toulouse-Lautrec
segunda-feira, 7 de maio de 2012
c'est tout.
[Venez m'aimer.
Venez.
Viens dans ce papier blanc.
Avec moi.
Je te donne ma peau.
Viens.
Vite.]
[Regarde-moi.]
[Venez dans la salle blanche. Venez m'enlever une robe de soie.
Je n'ai plus rien à porter.]
[Silence, et puis.]
Venez.
Viens dans ce papier blanc.
Avec moi.
Je te donne ma peau.
Viens.
Vite.]
[Regarde-moi.]
[Venez dans la salle blanche. Venez m'enlever une robe de soie.
Je n'ai plus rien à porter.]
[Silence, et puis.]
Marguerite Duras, C'est Tout
domingo, 6 de maio de 2012
quinta-feira, 3 de maio de 2012
c
há um coração que bate depressa, depressa. não é futurista,
não é máquina. não. é expressionista. bate depressa porque é a sua forma de
expressão. se bate a meio gás, é para garantir a vida, se bate depressa é
porque a vive e diz que vive.
há um coração que vive, não só garante a vida como vive. está
guardado no peito e comunica com o ouvido que se encosta. acelera, acelera… ele
vive. eu vivo. há generosidade entre nós.
(que bom sentir-te, coração.)
sábado, 21 de abril de 2012
luz
escrevo sobre a leveza dos passos daqueles pés sobre os quais vai um corpo pesado pela alma. um corpo que não diz, mas ao caminhar se revela aos olhos de quem o ama. esconde na carne os medos, as inquietações. reprime o grito do desejo: grita o desejo como um ator de cinema mudo. falta-lhe a sincronização entre a pele e o invisível que ela encobre. a eletricidade entre os dois sofre a interferência do medo. há um apagão na cidade do amor.
vou chamar o eletricista e pedir-lhe para matar o medo e acender a luz àquele desejo. ele chama por mim, eu respondo. o corpo é um canal. deixo de ser corpo quando estou iluminada por ele. sou feita da matéria do grito.
segunda-feira, 16 de abril de 2012
na cidade
nas aldeias vive-se a falar da vida dos outros. nas grandes cidades vive-se da página aberta do livro da pessoa sentada ao nosso lado no metro. nas aldeias sofre-se a morte de um vizinho a quem não se dizia mais do que um "bom dia". nas grandes cidades só se sabe da existência deste se ele se colocar à janela a garantir o olhar sobre mais um dia. nas aldeias grita-se para uma comunicação direta. nas grandes cidades faz-se uma chamada do outro lado da rua. nas aldeias dá-se comida aos cães. nas grandes cidades abandonam-se na rua. nas aldeias fazem-se bolos para a tia-avó. nas grandes cidades não se conhece a tia-avó. nas aldeias come-se pão. nas grandes cidades diz-se que o pão engorda. nas aldeias regam-se as plantas. nas grandes cidades ornamentam-se as casas com flores de plástico. nas aldeias deitam-se cedo. nas grandes cidades a noite é maior que o dia: dormir é para quem não gosta do escuro.
a rua está deserta, mas há vida atrás das paredes.
sou da cidade.
segunda-feira, 9 de abril de 2012
aquela palavra
não digo aquela palavra. juro que não digo. deixo-a sempre abrigada no desejo de a pronunciar. fica ali. não apanha frio nem chuva. está somente ali, em potência, à flor da boca. mas fica. permanece abrigada no desejo de a pronunciar. sabe que essa é a melhor sensação de todas: o não dizer agora para dizer mais tarde, com mais força. o desejo que a mantém cativa, mas que também a provoca, é o toldo da sensatez. é um querer que sabe que não pode e obedece. obedece porque se guarda para melhor. não é uma obediência cega, é a espera pelo clímax do nosso filme.
hoje quis dizer-te. mas era insensato. era rebelde. era desobedecer ao desejo (esse desejo peculiar).
quarta-feira, 4 de abril de 2012
estante
converso com a minha estante. peço-lhe que me conte todas as histórias, de todos os livros que se perfilam como soldados em formatura. não gosto do perfil militar da minha estante. já lhe disse. olho-a com muita intensidade, a uma distância média, como se à força do meu olhar o caos se abatesse sobre ela e a formatura desaparecesse. soldados estúpidos. ali se mantêm inertes, ilesos, irritantemente ilesos. nem um arranhão. é urgente levantar-me. é urgente levantar-me e desarrumar a estante, descolar os livros uns dos outros e deixá-los respirar as suas histórias para mim.
tanto pó que elas tinham...
terça-feira, 3 de abril de 2012
teclado(s)
«Uma parte do trabalho era inconsciente, pensava, crescia de noite dentro dela. De repente conseguia sem esforço o que antes lhe parecera impossível. O momento em que, como se tivesse ganho balanço oscilando para cá e para lá sobre uma corda tensa, se lançava sem rede. Como fizera (tinha a certeza) o autor da partitura. Ela refazia o seu voo. Experimentando a mesma sensação embriagante de soltar-se.
Não era o olhar do público que segurava a trapezista, há muito que sabia. Agora sorria ao lembrar-se de que pensava isso, com terror, anos atrás. Tudo se passava unicamente entre a mulher e a corda do baloiço onde oscilava. A vida e a morte dependiam do acordo entre ambos: da harmonia entre o corpo e a corda.
Também entre ela e o teclado (as cordas percutidas do teclado) havia no fundo a mesma ligação. Ela sabia. (...)»
Os teclados, Teolinda Gersão
(pintura: Renoir)
sábado, 17 de março de 2012
sem tocar o chão
estou numa posição confortável. uma posição que me deixa ser. é isso, que me deixa ser. fecho os olhos e concentro tudo o que sou no meus pés. danço sem tocar o chão, com uma leveza que só a imaginação permite.
calçei as sabrinas para imaginar que faço ballet.
os exercícios de raciocínio são os melhores purificadores da alma.
olá, Eu!
terça-feira, 6 de março de 2012
estavas
vou dizer à Lua que não sei de ti. estavas ali e já não estás. vou regar a planta que me deste, para que o verde das folhas simbolize a tua vida ainda em mim. estavas ali e já não estás. vou fazer arroz a mais, para comer pelos dois. estavas ali e já não estás. vou ler aquele livro que me deste, como promessa que não se quebra. estavas ali e já não estás. vou marcar na agenda um encontro, e fingir que aconteceu. estavas ali e já não estás. vou escrever o teu nome a lápis e apagar cem vezes. estavas ali e já não estás. Vou sorrir quando batem à porta. estavas. já não estás. vou colar papelinhos amarelos na parede a lembrar-me de não te esquecer. apontamentos diários de um sentimento recusado.
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